terça-feira, 18 de outubro de 2011

2 ano - 4 bim - Entrevista com Gérard Duménil

“Neoliberalismo e dominação de classe: uma análise marxista do capitalismo contemporâneo”

Entrevista com Gérard Duménil
por Paula Marcelino e Henrique Amorim

Gérard Duménil é economista, diretor de pesquisas no Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS), França e trabalha há vários anos com o economista Dominique Lévy. É membro do comitê de redação da revista Actuel Marx, codirigindo a coleção Actuel Marx Confrontation da Presse Universitaires de France. É co-presidente, juntamente com o filósofo Jacques Bidet, do Congresso Marx Internacional, que reúne aproximadamente mil pesquisadores de várias partes do mundo a cada três anos na cidade de Paris. Durante vários anos coordenou os “Seminários de Estudos Marxistas” em Paris que contavam com a participação, entre outros, de Suzanne de Brunhoff, François Chesnais, Michel Husson e Dominique Lévy. A partir desses seminários, várias obras foram publicadas; entre eles destaca-se La finance Capitaliste Actuel Marx Confrontation, 2006) e  Uma Nova Fase do Capitalismo?, publicada no Brasil em 2003 pela editora Xamã. Duménil é ativo na associação altermundialista francesa ATTAC, coordenando várias publicações e participando ativamente nos Fóruns Sociais Mundiais. Sua vasta produção teórica em artigos e livros é consagrada à análise do mundo atual, em especial ao neoliberalismo e ao imperialismo. A América Latina é, nesse momento, objeto privilegiado de seus estudos. Juntamente com Michel Löwy, Duménil prepara um número especial da prestigiosa Actuel Marx sobre as lutas sociais na América Latina. Entre suas principais obras pode-se destacar: Le concept de loi économique dans le capital (Maspero, Paris,  1977), que contém um prefácio de Louis Althusser; Économie Marxiste du Capitalisme (La Découverte, 2000);
Crise et Sortie de la Crise: ordres et desordres neolibéraux (PUF, Actuel Marx Confrontation, 2000) – livro também publicado nos Estados Unidos sob o título “Capital Resurgent” (Harvard University Press, 2000) e no prelo em espanhol pela editora Fondo de Cultura Económica de México. Duménil e Lévy mantém um sítio permanentemente atualizado onde está d i s p o n í v e l   a   q u a s e   t o t a l i d a d e   d a   p r o d u ç ã o   d o s   a u t o r e s :   h t t p : / /www.jourdan.ens.fr/levy Outros sítios indicados: Actuel Marx:  http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/; Congresso Marx Internacional (que esse ano terá como tema “AltermundialismoAnticapitalismo”):  http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/cm5/index5.htm

Resumo:
O texto que segue é uma entrevista realizada com o economista Gérard Duménil por ocasião da sua visita ao Brasil nos meses de outubro de novembro de 2006. A entrevista está centrada na abordagem do autor sobre as questões do capitalismo contemporâneo: o neoliberalismo, as classes sociais e a posição da Amércia Latina nessa ordem
econômica. Destaque para o fato de Duménil, em conjunto com Dominique Lévy, trabalharem com uma periodização espeífica do capitalismo, cuja singularidade está em afirmar que o neoliberalismo é uma nova hegemonia da finança, tal como a ocorrida no final do século XIX e início do século XX.

1) Nas suas obras recentes o senhor trabalha com uma periodização específica do capitalismo que já fornece os primeiros elementos analíticos a sua compreensão do período atual. O senhor poderia expor as principais fases dessa periodização e suas características fundamentais?
Não existe uma maneira única de periodizar o capitalismo, tudo depende do critério adotado: as tendências da técnica e da distribuição (em especial os movimentos das taxas de lucro), a transformação das formas institucionais onde se exprime a propriedade do capital (a empresa individual ou a sociedade por ações etc.), a estrutura de classe (a emergência das classes intermediárias), as modalidades de poder das classes dominantes e os compromissos que essas classes estabelecem com outras classes. Para compreender a história do capitalismo, é necessário combinar essas diferentes perspectivas. Eu vou adotar o último dos pontos de vista citados acima, aquele dos poderes de classe remontando ao final do século XIX, pensando, sobretudo, o caso dos Estados Unidos. No final do século XIX a fração mais avançada do capitalismo estadunidense caracterizava-se pela aparição de um novo setor financeiro (os grandes bancos) que preside a formação das grandes sociedades por ações. Simultaneamente forma-se uma burguesia financeira a certa distância das  empresas, doravante gerenciadas por quadros assalariados. Eu chamo « finança » essa nova entidade social que aparece nessa época, reunindo a fração superior desta burguesia e as instituições financeiras onde se concentra seu poder. Ao lado dessa finança sobrevive uma classe de capitalistas, como proprietários no sentido tradicional do termo. No contexto de uma crise maior (nos anos de1890) e de uma violenta luta de classes (greves, formação de um partido socialista etc.), afirma-se uma primeira hegemonia da finança, no sentido definido acima.
A relação entre essa finança e as camadas capitalistas tradicionais é aquela de um compromisso onde essas camadas ocupam uma posição subalterna. A crise de 1929 marcará, simultaneamente, a incapacidade da finança de controlar a instabilidade macroeconômica e a eliminação de uma grande parte do setor tradicional. Sob o efeito do triplo choque da Grande Depressão, da Primeira Guerra e da emergência da União Soviética como potência mundial, a finança perde sua hegemonia ao final da guerra, com um compromisso social que podemos chamar de “keynesiano” ou “social-democrata”, onde o poder das classes capitalistas encontrava-se “contido”. Um compromisso é estabelecido, “à esquerda”, entre os quadros dos setores público e privado e as classes populares de operários e assalariados. As desigualdades sociais são fortemente reduzidas e o poder de compra e a proteção social progridem (essas décadas, permanecem, contudo, imperialistas e destruidoras do meio ambiente). A crise estrutural dos anos 1970, que provoca uma nova queda das taxas de lucro, fornece as condições econômicas que permitem à luta das classes capitalistas – reprimidas até então, mas não eliminadas – a condução à restauração de sua
proeminência, numa “segunda hegemonia financeira”: o neoliberalismo. Os poderes e rendas das classes capitalistas são restaurados; a progressão do poder de compra das classes populares é bloqueada ou muito fortemente reduzida; as
proteções sociais são enfraquecidas; a pressão imperialista é renovada através da abertura das fronteiras comerciais e financeiras, a alta das taxas de juros, etc.

2) Qual é a sua definição de neoliberalismo? Qual é o marco do surgimento dessa etapa do capitalismo?
O neoliberalismo não é, de maneira alguma, um modelo de desenvolvimento. É uma nova ordem social marcada pelo restabelecimento da hegemonia da finança, isto é, frações superiores das classes capitalistas e instituições financeiras. É o resultado de uma luta de classes. Seu objetivo é assegurar o poder e a renda das classes capitalistas. Nisso ele obteve um grande sucesso. Seus métodos são: 1) novas formas de gestão das empresas voltadas para os acionistas; 2) políticas
econômicas visando à estabilidade dos preços e taxas de juros reais elevadas; e 3) abertura das fronteiras comerciais (livre mercado) e financeiras (livre circulação de capitais) entre países de níveis de desenvolvimento muito desiguais. Uma conseqüência dessa abertura das fronteiras é colocar-se em concorrência trabalhadores do mundo inteiro, cujo objetivo é rebaixar os salários e os direitos trabalhistas. Essa etapa do capitalismo é resultado de uma luta de classes. É um ato político. Foi permitida pelas condições da crise estrutural dos anos 1970 e pela incapacidade dos protagonistas do antigo compromisso em debelar a inflação. Esses elementos conduziram a uma saída regressiva da crise, permitindo o restabelecimento de uma forma de hegemonia financeira. 3) Quais são as principais diferenças e semelhanças entre a primeira e a segunda hegemonias financeiras? O ponto comum entre as duas hegemonias financeiras diz respeito a sua própria natureza: trata-se da dominação de uma fração superior das classes capitalistas, dominação na qual o papel das instituições financeiras é preponderante.
Hilferding já havia compreendido bem essa relação entre frações de classe e instituições na sua definição de « capital financeiro ». Através desta noção, ele designou o dispositivo institucional de concentração dos capitais nas instituições financeiras e o fato de estarem esses capitais à disposição das empresas; esse dispositivo não implicava, segundo ele, uma
dominação dos “magnatas da finança” sobre os “magnatas da indústria”, mas a dominação dos grandes capitalistas, controlando o conjunto da grande economia, sobre o conjunto da economia financeira e não financeira. Esses elementos fundamentais são característicos das duas hegemonias financeiras, aquela que Hilferding conheceu e aquela que prevalece no neoliberalismo. Na medida em que as duas hegemonias financeiras são separadas por meio século, é preciso atentar para um conjunto de diferenças. Uma primeira diferença é a natureza e a amplitude das instituições financeiras. Para Hilferding, tratava-se dos grandes bancos dos Morgan ou dos Rockefeller. No capitalismo do final do século XX, esses grandes bancos se metamorfosearam em gigantescas Financial Holding Companies, cuja atividade é muito diversificada e, sobretudo, é preciso
somar a elas os fundos de investimentos (em particular, os de pensão), assim como as instituições mais ou menos públicas como os bancos centrais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial. Uma segunda diferença refere-se às etapas da mundialização; ela está muito mais avançada no capitalismo contemporâneo. Pode-se observá-la no plano do comércio e do investimento, pela multiplicação dos acordos bilaterais ou no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC). A isto se acrescenta a metamorfose do sistema monetário mundial, desde o padrão-ouro até a liberação das transações monetárias e financeiras contemporâneas (tendo em vista a dominância do dólar e as novas tecnologias de informação). Uma terceira diferença diz respeito à realização da revolução keynesiana, quanto a sua forma centralizada de controle da estabilidade macroeconômica, pelas políticas monetárias e orçamentárias. O neoliberalismo não colocou em questão esses procedimentos macroeconômicos que na primeira hegemonia financeira não estavam presentes e que fizeram muita falta. Em uma economia onde os mecanismos do crédito já estavam bem desenvolvidos, a ausência da política monetária central, durante essa primeira hegemonia, levou à multiplicação e ao aprofundamento das recessões, que se transformavam, freqüentemente, em crises financeiras. O neoliberalismo mudou os objetivos dessas políticas: marcadamente, a prioridade foi dada à estabilidade dos preços em detrimento do pleno emprego. Mas o Estado neoliberal continua engajado, talvez mais que nunca, na estabilização do nível geral de atividade e do sistema financeiro. Enfim, um quarto aspecto essencial, de natureza política, é o estabelecimento de um compromisso de classe.  A primeira hegemonia financeira foi atravessada por uma “tensão”, combinação de luta e cooperação, entre as frações das classes capitalistas gestadas na metamorfose institucional do começo
do século e as classes capitalistas tradicionais. Na segunda hegemonia, essa contradição interna é secundária, ao menos nos Estados Unidos e na Europa (sem dúvida, menos na América Latina). Ao contrário, o compromisso entre as classes capitalistas e as frações superiores dos quadros joga um papel central na segunda hegemonia financeira, sobretudo nos Estados Unidos. Essa diferença abre uma possibilidade de superação da ordem neoliberal nesse início do século XXI, em condições muito diferentes daquelas que prevaleciam na segunda metade do século XX (o pós Grande Depressão). Podemos antecipar que as formas – regressivas para as classes dominantes à época – de desestabilização da primeira hegemonia financeira na Grande Depressão e na Segunda Guerra Mundial, não se repetirão. É pouco provável que uma crise maior ou uma guerra mundial
produzam uma nova grande ameaça sobre as classes capitalistas, as quais se imporia um novo compromisso como aquele do pós-guerra. O que se estabelece nos Estados Unidos aponta muito mais na direção oposta. Reconfigurações já estão sendo trabalhadas nesse país, o que reforça a hegemonia da finança. Observase nos Estados Unidos uma fusão entre grandes proprietários e a alta gerência.

4) Muitas correntes teóricas nas áreas das Ciências Sociais de prestígio na atualidade consideram a luta de classes e a análise a partir dela um anacronismo. Nas suas análises, o senhor afirma que a compreensão de todo o capitalismo, inclusive da sua fase atual, não é possível sem a compreensão das classes sociais e de sua luta. Qual é o papel da luta de classes na origem do neoliberalismo? Qual é a co-relação de forças entre as classes sociais hoje?
A recusa ou a incapacidade de ver na luta de classes o famoso motor da história não é surpreendente da parte das classes dominantes ou das escolas de pensamento que, intencionalmente ou não, são suas propagandistas. Entretanto, não se compreende nada da história do capitalismo sem se reconhecer este papel determinante, em particular na análise do neoliberalismo. A contenção ou a repressão dos lucros das classes capitalistas no compromisso keynesiano é um fato histórico que se pode verificar nas modalidades de dispositivos institucionais (de regulação monetária e financeira, tais como as normas de taxas de juros ou os limites à conversibilidade) e nas rendas e patrimônios das classes mais abastadas, que se pode apreender quantitativamente. O neoliberalismo continuou, na América Latina, o trabalho dos regimes fascistas; na Europa e nos Estados Unidos a imposição da ordem neoliberal fez-se ao preço da repressão dos movimentos grevistas e das lutas populares (pensemos em Margaret Thatcher e Ronald Reagan). Mas, todos os componentes da luta das classes capitalistas,
desde a Segunda Guerra Mundial até nossos dias, visam retomar o controle dos espíritos (universitários, prêmios Nobel, mídias, etc.), testemunhas de uma estratégia concebida e formulada desde os primeiros anos da perda da hegemonia (ler sobre o assunto Von Hayek). É bem mais surpreendente constatar a oposição que nós encontramos (Dominique Lévy e eu) assim que apresentamos essa interpretação de classe do neoliberalismo, há aproximadamente dez anos. As coisas progridem, por exemplo, Dav id Ha rv e y ,  a   s u a  mane i ra ,   a   re tomou  na   s u a  Pe q u ena  Hi s tór i a  do Neoliberalismo, mas, no decorrer da minha última passagem pelo Brasil, eu ainda ouvi teóricos da extrema esquerda marxista pura e dura, qualificarem esta tese de subjetivista, visto que ela dá peso excessivo à estratégia organizada de uma classe, ou fração de classe. A essa leitura da história, prefere-se uma interpretação que caracteriza o neoliberalismo como fruto do desenvolvimento objetivo e necessário da evolução do capitalismo, ocupado há dois séculos em cavar seu túmulo com o mesmo empenho. Na análise que nós realizamos sobre a história do capitalismo, tentamos sempre combinar concretamente – o que requer muito trabalho – as condições objetivas e o jogo da luta de classes; no qual seria um erro subestimar as vontades ativas. É difícil manter o equilíbrio a todo instante, mas o objetivo é esse. O princípio geral foi anunciado por Marx: os homens fazem sua própria história, mas em condições determinadas (subentende-se, em larga medida, “condições econômicas”).

5) Dentro dessa validade teórico-prática da luta de classes e do materialismo histórico, como é possível pensar para além do marxismo? Ou ainda, pensar para além é romper ou atualizar categorias de análise propostas por Marx?
Na análise de classe do neoliberalismo é necessário reconhecer a natureza social da ordem dominante no decorrer das primeiras décadas do compromisso do pós-guerra. Nesse compromisso, os quadros assalariados dos setores público e privado jogaram um papel central. Essa centralidade refere-se a sua capacidade de “gerenciar” as organizações (empresas ou outras) ou de definir e colocar em ação políticas de aportes sociais alternativos: exprimindo um compromisso de esquerda com as classes populares (operários e outros assalariados) ou com certas frações das classes capitalistas. Os quadros detinham uma espécie de
monopólio nesse sentido. De certa maneira, como classe média, eles podem oscilar entre um lado e outro, em direção à direita ou à esquerda. De um lado ou de outro das barreiras sociais, eles podem obter condições de vida vantajosas. Somente a luta das classes populares os torna suscetíveis ao engajamento do “bom” lado, como ocorrido no compromisso keynesiano. É aqui que um marxista estereotipado e cristalizado pode tornar-se um obstáculo à análise teórica, recusando-se a considerar a natureza de classe nas relações de constituição das classes intermediárias de quadros e empregados. Primeiramente, é preciso parar de confundir essas classes com uma pequena burguesia; em segundo lugar, é necessário reconhecer a polarização de classe
em seu seio, entre, de um lado, os quadros que concentram as tarefas de concepção, de organização e de direção em suas mãos, e, de outro lado, os assalariados encarregados de tarefas de execução (cujo modelo pode ser as condições do trabalho produtivo, quando determinadas condições objetivas –  contato  com o  c l i ent e  ou   com  a  prox imidade  dos   q u adros  – não o interditassem). Esta revolução do pensamento, que Marx antecipou largamente, é, entretanto, muito difícil para muitos marxistas. Mas a verdadeira dificuldade para eles é a renúncia da estratégia tradicional do “movimento operário”, que conduz, nos países que se reclamam socialistas, à emergência de uma classe de quadros sobre as bases estabelecidas pela vanguarda revolucionária (ler sobre esse assunto Moshe Lewin).

6) As classes sociais têm papel importante para a fundamentação da teoria social de Marx, como explicar a ausência de uma leitura sistemática sobre esse tema [da] obra desse autor?
Eu acredito que a obra de Marx referente às classes sociais é largamente estudada. O problema é a esclerose dos modos de pensamento. A teoria marxista, como prática, é ainda muito freqüentemente fechada no academicismo: nenhuma idéia pode ser avançada se não for emprestada de um autor. É preciso sair disso: ousar pensar, em especial, sobre as classes.

7) Para encerrar a questão das classes sociais, o Senhor vê como central o   d e s e n v o l v ime n t o   d e s s e   t ema   e   s u a   p r o b l ema t i z a ç ã o   p a r a   o aprofundamento das análises sociais hoje? Por que? A leitura, por exemplo, do neoliberalismo não necessitaria de uma caracterização do que são as classes hoje? De como essas classes se ramificam e de como se embatem na atual fase do capitalismo?
Tendo em vista o que eu já disse anteriormente, a resposta a essa questão é, evidentemente, positiva. Eu acredito muito no estudo factual. É preciso estudar concretamente as estruturas de classe e as práticas de classe. Trata-se de um verdadeiro trabalho de sociólogo, de historiador ou de especialista em ciências políticas. Incluir esse trabalho no campo da economia, tal como ela é ensinada, seria uma revolução. Existem numerosos trabalhos nesse sentido, mas é preciso avançar; sobretudo não temer mostrar que decisões são tomadas e colocadas em prática, quer se trate da gestão das empresas, quer da definição de políticas ou da organização das lutas.

8) Dentro dessa perspectiva, como se inseriria a América Latina na ordem neoliberal? Qual é o papel das economias dos países latinos americanos no capitalismo mundializado?
A  América Latina ocupa um lugar particular no neoliberalismo. Em primeiro lugar, ela foi a primeira vítima da ordem neoliberal. A América Latina saiu das primeiras décadas do pós-guerra com uma força de trabalho gozando de certo
poder de compra (a despeito das enormes desigualdades internas de cada país e mesmo entre eles). Saiu também com uma indústria nacional suficientemente avançada e autônoma. As classes dominantes dessa região do mundo aspiravam
a se inserir na nova configuração do imperialismo em condições relativamente vantajosas, mas a abertura neoliberal e o rumo das reformas que ela ocasionou produziram estragos. Um caso emblemático foi o da Argentina nos anos 1990, onde as classes dirigentes venderam massivamente suas empresas e exportaram seus capitais aos Estados Unidos. As políticas neoliberais dessa década criaram as condições da terrível crise do começo dos anos 2000, e da miséria que ela provocou. Tais políticas ainda acentuaram a queda dramática do poder de compra dos assalariados empregados a partir dos anos 1970. Desse ponto de vista, a América Latina é radicalmente diferente de um país como a China que se abre à mundialização neoliberal com uma força de trabalho muito barata, cujo baixo preço é reforçado por uma taxa de câmbio muito fraca. Sua classe dirigente está em processo de transformação em direção ao capitalismo selvagem e seus apetites voltaram-se para os meios de produção
nacionais ainda a serem apropriados (o bolo ainda está em casa). Porém, em segundo lugar, a  América Latina é uma terra de luta e de resistências sociais. De maneira geral, vista da Europa, é a região do mundo na qual poderiam emergir as forças mais radicais de desestabilização do capitalismo neoliberal. A imagem que se impõe é contrastada por lutas populares e sanções
eleitorais, de um lado, acumulação de recuos e ocasiões perdidas, por outro. É fácil dizer, mas difícil realizar.

9) Amparando as políticas macro-econômicas neoliberais existe um discurso neoliberal: de necessidade de desregulamentação do uso da força de trabalho, da diminuição do papel do Estado na economia, etc. Por que esse discurso tem repercussão? Em outras palavras, existe uma base material que sustente esse discurso, quando o que vemos é um Estado que cada vez mais se coloca presente para administrar os interesses dos capitalistas?
Toda a história do neoliberalismo desde suas origens é permeada por essa tensão entre a desregulamentação e a diminuição do papel do Estado, de uma parte, e seu fortalecimento, de outra. Por exemplo, os Estados Unidos votaram, em 1980 (no dia seguinte da alta das taxas de lucro, do Golpe de 1979), uma lei intitulada Deregulation and Monetary Control Act, a lei de desregulamentação e de controle monetário. A justaposição dos termos é perfeitamente explícita: liberação da ação das empresas de um lado e fortalecimento do controle exercido pelo Banco Central sobre a criação monetária de outro. Portanto, maior ou menor presença do Estado? Resposta: depende. Sim, o neoliberalismo liberou as empresas de certos entraves, pois se tratava de ter lucros; sim há um enorme fortalecimento do poder do Banco Central, pois se trata de lutar contra a inflação
que arruinava os ricos. O princípio geral é que os fins são mais importantes que os meios. Quem negaria que o Estado estadunidense é forte? É verdade no plano militar, como também no plano econômico. Quem negocia os tratados de livre-comércio, senão o Estado dos Estados Unidos? Nesse início de século XXI, a economia estadunidense estaria acabada sem a intervenção maciça do Estado no que se refere à política macroeconômica, em especial a política de crédito.

10) É comum ouvirmos hoje, até mesmo como justificativa da impossibilidade de controle sobre o capitalismo, que o capital financeiro e o capital produtivo são duas coisas diferentes e independentes. O que o senhor acha disso? A ruptura entre a base produtiva e o capital financeiro não seria mais uma ideologia sobre o fim do trabalho?
Não  é   cor r e to opor   c api t a l   f inanc e i ro  a   c api t a l  não- f inanc e i ro no capitalismo de hoje (nem mesmo no tempo de Hilferding, como vimos). Nas formas as mais avançadas que reveste a relação capitalista de nossos dias, a finança (fração superior das classes capitalistas e instituições financeiras) possui tudo: capital financeiro e não-financeiro. A propriedade do setor produtivo (de produção de bens ou de serviços) é financeira, pois se materializa em ações (ou, em um sentido estendido da noção de propriedade, em títulos de créditos). Tudo é negociável no mercado financeiro. A propriedade das grandes
famílias capitalistas é fortemente diferenciada e mediada pelas sociedades financeiras que obscurecem a verdadeira natureza da relação de propriedade. A diferença entre um setor financeiro e não-financeiro existe somente nas empresas de menor porte onde o papel de proprietários individuais permanece significativo. Esta é uma das formas de dominação do grande capital sobre o capital mais fraco e freqüentemente mais endividado. Para tratar seriamente esta questão, seria necessário considerá-la no quadro mais geral das relações imperialistas e, tendo em vista a especificidade de certas economias, como a economia brasileira. O controle do setor financeiro pelo estrangeiro, isto é, do capital internacional, já está avançado no Brasil (ainda em curso de realização), e as características familiares da propriedade de certas empresas podem permanecer acentuadas.

1 1 )  Sua s   aná l i s e s   apont am que  o neol ibe r a l i smo  j á   apr e s ent a evidências de esgotamento e fragilização. Quais são esses elementos? Que saídas são possíveis nesse contexto?
Se deixarmos de lado a questão das resistências políticas que ocorrem hoje, em especial na América do Sul, as principais contradições se situam nos Estados Unidos.  A formulação mais “compacta” que se pode dar a essas contradições remete, de um lado, às classes capitalistas estadunidenses e, de outro, aos Estados Unidos como país. Do ponto de vista das classes capitalistas estadunidenses, o território do país não constitui mais um campo de investimentos privilegiado. Uma parte
importante, embora impossível de contabilizar, da fortuna das famílias é investida no estrangeiro, notadamente por intermédio dos paraísos fiscais. Importa somente a rentabilidade dos investimentos. Tudo é bom, em particular nos países onde o custo da força de trabalho é pouco elevado e onde a ordem impera, como na China. Os ganhos obtidos por intermédio dos paraísos
fiscais são em parte acumulados fora dos Estados Unidos. Do ponto de vista dos Estados Unidos como país, são os outros países que financiam: 1. a acumulação do capital no território estadunidense, 2. O déficit orçamentário e, mesmo, 3. a exportação de capitais para o resto do mundo.   A demanda  domé s t i c a   e s t adunidens e   é   s atisfe i t a   ao pre ço de
importações muito elevadas, corolário da fragilidade dos investimentos locais e da desterritoralização da produção. A evasão para os paraísos fiscais contribui no déficit orçamentário, quando, na verdade, a estratégia imperialista das classes capitalistas passa por um Estado forte, logo, dispendioso. Esse divórcio tem duas conseqüências. De uma parte, essa trajetória requer
o pagamento de um fluxo crescente de dividendos e de juros ao estrangeiro, e ela só pode progredir na medida em que os estrangeiros permanecem dispostos a investir nos Estados Unidos, o que a acumulação dos desequilíbrios exteriores pode comprometer. De outra parte, a sustentação da atividade econômica nos Estados Unidos torna-se cada vez mais difícil. Todas as possibilidades são maximizadas.   As taxas de juros reais ganham níveis comparados aqueles dos anos 1950 ou 1960, em plena contradição com os objetivos do neoliberalismo; o dólar torna-se frágil, pois um dólar elevado, como as taxas de juros elevadas, poderiam causar uma nova recessão; o endividamento interno é forçado ao extremo, com riscos de instabilidade
considerável, e mesmo que tudo fosse feito para evitá-lo, poderia igualmente provocar uma contração da atividade; a gestão das empresas está inteiramente voltada para a busca da alta dos lucros dos acionistas, enquanto que a quase totalidade dos benefícios são distribuídos em dividendos, prejudicando, dessa forma, a acumulação local (o que torna necessário o financiamento exterior). Tu d o   fa z ,  p o r t a n t o,  p re ve r   a   fo rm a ç ã o   d e   u m a   n ova   fa s e   d o neoliberalismo, ou para além do neoliberalismo. É necessário compreender que a preocupação central das classes dominantes são seus objetivos, e não os métodos utilizados para a sua consecução. O que elas não puderam obter segundo as regras que prevaleceram em vinte anos de neoliberalismo, essas classes tentarão obter de outra maneira. Uma vez mais, todos os meios são bons. O Estado dos Estados Unidos fará tudo aquilo que esteja em seu poder para  pre s e rvar, de   uma  pa rt e,  a   for ç a  do pa í s   e, de  ou t ra,  a   s i t u a ç ao extremamente favorável de suas classes dirigentes. Somente as lutas populares
poderão desestabilizar o compromisso político entre as classes capitalistas e as frações superiores dos quadros, em benefício de um compromisso mais “à esquerda” ou “menos à direita”. Mas,  nada se pode dar como certo no plano do imperialismo.

12) O que é ser um país imperialista na fase atual do capitalismo quando os capitais não são apenas capitais nacionais? Quando boa parte dos lucros capitalistas vai para paraísos ficais?
A situação que eu acabei de descrever corresponde, de fato, a uma configuração imperialista bem pouco ortodoxa. Essas transformações implicam reconsiderar certas ambigüidades dos conceitos fundamentais, como no caso das classes, considerado anteriormente. O imperialismo é uma característica estrutural do capitalismo, desde sua origem. Em paralelo à exploração dos trabalhadores produtivos em cada país, existe uma segunda relação fundamental de exploração (ao lado de várias outras
como as relações de explorações patriarcais) desejosa de que os países mais avançados façam de seu avanço a alavanca de uma dominação (as ferramentas para isso são: a abertura das fronteiras comerciais e monetárias entre países com níveis de desenvolvimento muito desiguais, a corrupção, a subvenção e a guerra). É esta, portanto, a questão no imperialismo. Evidentemente, estas duas relações de exploração (capitalista/trabalhador produtivo – país avançado/país menos avançado) se combinam, pois são as classes capitalistas que desde o início se beneficiam da relação imperialista.

13) Uma palavra sobre o Brasil. Sabemos que seus estudos sobre a América Latina não tem como foco principal nosso país, mas como o senhor vê os processos político-econômicos do Brasil hoje? Qual é a sua avaliação do governo Lula quanto à sua integração à ordem neoliberal?
A dificuldade que encontra a concepção tradicional de imperialismo face às configurações contemporâneas se constrói sobre essa dualidade: exploração de um país sobre um outro ou exploração da classe dominante do país dominante sobre um país menos avançado (de todas suas classes)? O que se observa nos Estados Unidos é uma « desconexão » crescente entre o caráter nacional da dominação imperialista e seu caráter de classe, na qual a força nacional (o braço diplomático e armado da relação imperialista) continua sendo instrumentalizado pela classe capitalista, ainda que ela aspire a se autonomizar em um paroxismo de egoísmo social, como classe dominante mundial (possivelmente em relação às classes dominantes de outros países).
Como a maioria dos países da América Latina, o Brasil cresce lentamente desde o começo dos anos 1980. O fluxo de investimentos estrangeiros não modificou essa situação. O orçamento revela um excedente primário justificado pela pretensa necessidade de pagamento da dívida pública, e as taxas de juros permanecem muito altas. As tarefas de primeira ordem, como a educação, a reforma agrária, a construção da infra-estrutura ou a segurança pública, são negligenciadas em nome dessa ortodoxia. O governo Lula, a despeito da distribuição de recursos aos mais pobres como nas « bolsas famílias », curva-se ao modelo neoliberal, sem satisfazer as reivindicações populares ou aquelas dos proprietários de setores econômicos que conservam seu caráter nacional. A abertura à mundialização neoliberal é total: o setor financeiro passa gradualmente ao controle estrangeiro. O Brasil é atualmente um dos atores da crise da OMC (o fiasco do ciclo de Doha), face à resistência dos países do centro a abrir seus mercados de produtos agrícolas. É melhor que uma submissão integral, mas a demanda de um país
como o Brasil não contradiz em nada os objetivos neoliberais. Trata-se somente de exigir que os países dominantes joguem honestamente o jogo neoliberal que eles impõem aos outros, aquilo que é um mínimo. O Brasil jamais toma o lugar de vanguarda das resistências contra o imperialismo ou o neoliberalismo. Por exemplo, ao mesmo tempo em que a Argentina anulou uma parte muito importante de sua dívida pública, o Brasil foi um bom aluno do neoliberalismo e não apoiou esse movimento, nem verbalmente, nem de fato. Uma oportunidade foi, entretanto, aberta. No que se refere à luta contra as taxas de juros elevadas, o governo Lula é menos radical que certos industriais nacionais. O resultado é, portanto, bastante severo.

14)  Ao levarmos em conta que a conjuntura política conservadora, mesmo que não uniforme, prevalece no mundo hoje, como seria possível vislumbrar uma ação política de esquerda e vinculada a que tipo de organização política?
É preciso utilizar todas as organizações de luta política disponíveis e expandir a luta para além dessas organizações. Uma primeira tarefa consiste em resistir a todos os avanços neoliberais, por exemplo, na desmontagem de proteções sociais,
na redução dos poderes de compra, na privatização do ensino ou no abandono das estruturas públicas de educação, de assistência social, etc. Os métodos tradicionais são eficazes (ocupações, greves, manifestações, fóruns...), mas nada proíbe o emprego de novos métodos: o MST é um exemplo disso. Uma tarefa urgente é desfazer a lavagem cerebral. A ação deve ser conduzida a todos os níveis, dirigindo-se a grupos bem informados e formados, ou populares. É preciso criar meios de difusão alternativos, preservar ou ativar as formas de luta culturais: teatro, música, quadrinhos... A utilização das organizações tradicionais como os partidos ou sindicatos não está excluída, mas a experiência prova que essas estruturas formais
produziram espontaneamente quadros que não resistem a sua própria ascensão, engajando-se em processos de promoção social. O preceito zapatista que diz que “o poder corrompe” é justo, mas toda a criatividade dos movimentos sociais deve visar ultrapassá-lo.

15) E, para finalizar, o que é ser marxista hoje?
O horizonte é sempre a superação de todas as estruturas de classe, as quais se somam todas outras formas de exploração. Não é suficiente nascer igual, ainda é preciso dispor de meios econômicos e intelectuais de preservação dessa igualdade: não uma igualdade de possibilidades, mas uma igualdade realizada. Por que se referir a um homem morto há mais de um século, ao invés de se contentar em se engajar na luta de hoje? Porque Marx, outro homem de ação nas lutas de seu tempo, foi o teórico mais completo do capitalismo e, de uma maneira mais geral, das sociedades de classe. Eu não vejo como compreender a
sociedade atual e sua história fora da estrutura forças produtivas/relações de produção – classes (na sua relação com as relações de produção) e luta de classes – Estado. No plano econômico, eu não vejo como renunciar às teorias marxistas de exploração,  de instabilidade macroeconômica, da transformação técnica ou da centralidade das taxas de lucro... Nada é perfeito, mas o ponto de partida é exatamente este. O capitalismo produziu muito bem no século XIX e no século XX a violência geradora de sua própria eliminação. E podemos dizer que o neoliberalismo prolonga essa tendência. Marx previu no proletariado a força social suscetível de mudar o mundo, mas essas experiências soçobraram. Inúmeros marxistas não fizeram ainda esse balanço justificados pelas suas autoproclamações de “probidade democrática”. Ser marxista hoje é voltar-se às raízes do pensamento de Marx, sem perder de vista a história do capitalismo e aquilo que foi o socialismo marxista. Resumidamente, atualizar tudo, conservando os princípios fundamentais.

Revoluções no século XX