terça-feira, 18 de outubro de 2011

2 ano - 4 bim - Entrevista com Gérard Duménil

“Neoliberalismo e dominação de classe: uma análise marxista do capitalismo contemporâneo”

Entrevista com Gérard Duménil
por Paula Marcelino e Henrique Amorim

Gérard Duménil é economista, diretor de pesquisas no Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS), França e trabalha há vários anos com o economista Dominique Lévy. É membro do comitê de redação da revista Actuel Marx, codirigindo a coleção Actuel Marx Confrontation da Presse Universitaires de France. É co-presidente, juntamente com o filósofo Jacques Bidet, do Congresso Marx Internacional, que reúne aproximadamente mil pesquisadores de várias partes do mundo a cada três anos na cidade de Paris. Durante vários anos coordenou os “Seminários de Estudos Marxistas” em Paris que contavam com a participação, entre outros, de Suzanne de Brunhoff, François Chesnais, Michel Husson e Dominique Lévy. A partir desses seminários, várias obras foram publicadas; entre eles destaca-se La finance Capitaliste Actuel Marx Confrontation, 2006) e  Uma Nova Fase do Capitalismo?, publicada no Brasil em 2003 pela editora Xamã. Duménil é ativo na associação altermundialista francesa ATTAC, coordenando várias publicações e participando ativamente nos Fóruns Sociais Mundiais. Sua vasta produção teórica em artigos e livros é consagrada à análise do mundo atual, em especial ao neoliberalismo e ao imperialismo. A América Latina é, nesse momento, objeto privilegiado de seus estudos. Juntamente com Michel Löwy, Duménil prepara um número especial da prestigiosa Actuel Marx sobre as lutas sociais na América Latina. Entre suas principais obras pode-se destacar: Le concept de loi économique dans le capital (Maspero, Paris,  1977), que contém um prefácio de Louis Althusser; Économie Marxiste du Capitalisme (La Découverte, 2000);
Crise et Sortie de la Crise: ordres et desordres neolibéraux (PUF, Actuel Marx Confrontation, 2000) – livro também publicado nos Estados Unidos sob o título “Capital Resurgent” (Harvard University Press, 2000) e no prelo em espanhol pela editora Fondo de Cultura Económica de México. Duménil e Lévy mantém um sítio permanentemente atualizado onde está d i s p o n í v e l   a   q u a s e   t o t a l i d a d e   d a   p r o d u ç ã o   d o s   a u t o r e s :   h t t p : / /www.jourdan.ens.fr/levy Outros sítios indicados: Actuel Marx:  http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/; Congresso Marx Internacional (que esse ano terá como tema “AltermundialismoAnticapitalismo”):  http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/cm5/index5.htm

Resumo:
O texto que segue é uma entrevista realizada com o economista Gérard Duménil por ocasião da sua visita ao Brasil nos meses de outubro de novembro de 2006. A entrevista está centrada na abordagem do autor sobre as questões do capitalismo contemporâneo: o neoliberalismo, as classes sociais e a posição da Amércia Latina nessa ordem
econômica. Destaque para o fato de Duménil, em conjunto com Dominique Lévy, trabalharem com uma periodização espeífica do capitalismo, cuja singularidade está em afirmar que o neoliberalismo é uma nova hegemonia da finança, tal como a ocorrida no final do século XIX e início do século XX.

1) Nas suas obras recentes o senhor trabalha com uma periodização específica do capitalismo que já fornece os primeiros elementos analíticos a sua compreensão do período atual. O senhor poderia expor as principais fases dessa periodização e suas características fundamentais?
Não existe uma maneira única de periodizar o capitalismo, tudo depende do critério adotado: as tendências da técnica e da distribuição (em especial os movimentos das taxas de lucro), a transformação das formas institucionais onde se exprime a propriedade do capital (a empresa individual ou a sociedade por ações etc.), a estrutura de classe (a emergência das classes intermediárias), as modalidades de poder das classes dominantes e os compromissos que essas classes estabelecem com outras classes. Para compreender a história do capitalismo, é necessário combinar essas diferentes perspectivas. Eu vou adotar o último dos pontos de vista citados acima, aquele dos poderes de classe remontando ao final do século XIX, pensando, sobretudo, o caso dos Estados Unidos. No final do século XIX a fração mais avançada do capitalismo estadunidense caracterizava-se pela aparição de um novo setor financeiro (os grandes bancos) que preside a formação das grandes sociedades por ações. Simultaneamente forma-se uma burguesia financeira a certa distância das  empresas, doravante gerenciadas por quadros assalariados. Eu chamo « finança » essa nova entidade social que aparece nessa época, reunindo a fração superior desta burguesia e as instituições financeiras onde se concentra seu poder. Ao lado dessa finança sobrevive uma classe de capitalistas, como proprietários no sentido tradicional do termo. No contexto de uma crise maior (nos anos de1890) e de uma violenta luta de classes (greves, formação de um partido socialista etc.), afirma-se uma primeira hegemonia da finança, no sentido definido acima.
A relação entre essa finança e as camadas capitalistas tradicionais é aquela de um compromisso onde essas camadas ocupam uma posição subalterna. A crise de 1929 marcará, simultaneamente, a incapacidade da finança de controlar a instabilidade macroeconômica e a eliminação de uma grande parte do setor tradicional. Sob o efeito do triplo choque da Grande Depressão, da Primeira Guerra e da emergência da União Soviética como potência mundial, a finança perde sua hegemonia ao final da guerra, com um compromisso social que podemos chamar de “keynesiano” ou “social-democrata”, onde o poder das classes capitalistas encontrava-se “contido”. Um compromisso é estabelecido, “à esquerda”, entre os quadros dos setores público e privado e as classes populares de operários e assalariados. As desigualdades sociais são fortemente reduzidas e o poder de compra e a proteção social progridem (essas décadas, permanecem, contudo, imperialistas e destruidoras do meio ambiente). A crise estrutural dos anos 1970, que provoca uma nova queda das taxas de lucro, fornece as condições econômicas que permitem à luta das classes capitalistas – reprimidas até então, mas não eliminadas – a condução à restauração de sua
proeminência, numa “segunda hegemonia financeira”: o neoliberalismo. Os poderes e rendas das classes capitalistas são restaurados; a progressão do poder de compra das classes populares é bloqueada ou muito fortemente reduzida; as
proteções sociais são enfraquecidas; a pressão imperialista é renovada através da abertura das fronteiras comerciais e financeiras, a alta das taxas de juros, etc.

2) Qual é a sua definição de neoliberalismo? Qual é o marco do surgimento dessa etapa do capitalismo?
O neoliberalismo não é, de maneira alguma, um modelo de desenvolvimento. É uma nova ordem social marcada pelo restabelecimento da hegemonia da finança, isto é, frações superiores das classes capitalistas e instituições financeiras. É o resultado de uma luta de classes. Seu objetivo é assegurar o poder e a renda das classes capitalistas. Nisso ele obteve um grande sucesso. Seus métodos são: 1) novas formas de gestão das empresas voltadas para os acionistas; 2) políticas
econômicas visando à estabilidade dos preços e taxas de juros reais elevadas; e 3) abertura das fronteiras comerciais (livre mercado) e financeiras (livre circulação de capitais) entre países de níveis de desenvolvimento muito desiguais. Uma conseqüência dessa abertura das fronteiras é colocar-se em concorrência trabalhadores do mundo inteiro, cujo objetivo é rebaixar os salários e os direitos trabalhistas. Essa etapa do capitalismo é resultado de uma luta de classes. É um ato político. Foi permitida pelas condições da crise estrutural dos anos 1970 e pela incapacidade dos protagonistas do antigo compromisso em debelar a inflação. Esses elementos conduziram a uma saída regressiva da crise, permitindo o restabelecimento de uma forma de hegemonia financeira. 3) Quais são as principais diferenças e semelhanças entre a primeira e a segunda hegemonias financeiras? O ponto comum entre as duas hegemonias financeiras diz respeito a sua própria natureza: trata-se da dominação de uma fração superior das classes capitalistas, dominação na qual o papel das instituições financeiras é preponderante.
Hilferding já havia compreendido bem essa relação entre frações de classe e instituições na sua definição de « capital financeiro ». Através desta noção, ele designou o dispositivo institucional de concentração dos capitais nas instituições financeiras e o fato de estarem esses capitais à disposição das empresas; esse dispositivo não implicava, segundo ele, uma
dominação dos “magnatas da finança” sobre os “magnatas da indústria”, mas a dominação dos grandes capitalistas, controlando o conjunto da grande economia, sobre o conjunto da economia financeira e não financeira. Esses elementos fundamentais são característicos das duas hegemonias financeiras, aquela que Hilferding conheceu e aquela que prevalece no neoliberalismo. Na medida em que as duas hegemonias financeiras são separadas por meio século, é preciso atentar para um conjunto de diferenças. Uma primeira diferença é a natureza e a amplitude das instituições financeiras. Para Hilferding, tratava-se dos grandes bancos dos Morgan ou dos Rockefeller. No capitalismo do final do século XX, esses grandes bancos se metamorfosearam em gigantescas Financial Holding Companies, cuja atividade é muito diversificada e, sobretudo, é preciso
somar a elas os fundos de investimentos (em particular, os de pensão), assim como as instituições mais ou menos públicas como os bancos centrais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial. Uma segunda diferença refere-se às etapas da mundialização; ela está muito mais avançada no capitalismo contemporâneo. Pode-se observá-la no plano do comércio e do investimento, pela multiplicação dos acordos bilaterais ou no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC). A isto se acrescenta a metamorfose do sistema monetário mundial, desde o padrão-ouro até a liberação das transações monetárias e financeiras contemporâneas (tendo em vista a dominância do dólar e as novas tecnologias de informação). Uma terceira diferença diz respeito à realização da revolução keynesiana, quanto a sua forma centralizada de controle da estabilidade macroeconômica, pelas políticas monetárias e orçamentárias. O neoliberalismo não colocou em questão esses procedimentos macroeconômicos que na primeira hegemonia financeira não estavam presentes e que fizeram muita falta. Em uma economia onde os mecanismos do crédito já estavam bem desenvolvidos, a ausência da política monetária central, durante essa primeira hegemonia, levou à multiplicação e ao aprofundamento das recessões, que se transformavam, freqüentemente, em crises financeiras. O neoliberalismo mudou os objetivos dessas políticas: marcadamente, a prioridade foi dada à estabilidade dos preços em detrimento do pleno emprego. Mas o Estado neoliberal continua engajado, talvez mais que nunca, na estabilização do nível geral de atividade e do sistema financeiro. Enfim, um quarto aspecto essencial, de natureza política, é o estabelecimento de um compromisso de classe.  A primeira hegemonia financeira foi atravessada por uma “tensão”, combinação de luta e cooperação, entre as frações das classes capitalistas gestadas na metamorfose institucional do começo
do século e as classes capitalistas tradicionais. Na segunda hegemonia, essa contradição interna é secundária, ao menos nos Estados Unidos e na Europa (sem dúvida, menos na América Latina). Ao contrário, o compromisso entre as classes capitalistas e as frações superiores dos quadros joga um papel central na segunda hegemonia financeira, sobretudo nos Estados Unidos. Essa diferença abre uma possibilidade de superação da ordem neoliberal nesse início do século XXI, em condições muito diferentes daquelas que prevaleciam na segunda metade do século XX (o pós Grande Depressão). Podemos antecipar que as formas – regressivas para as classes dominantes à época – de desestabilização da primeira hegemonia financeira na Grande Depressão e na Segunda Guerra Mundial, não se repetirão. É pouco provável que uma crise maior ou uma guerra mundial
produzam uma nova grande ameaça sobre as classes capitalistas, as quais se imporia um novo compromisso como aquele do pós-guerra. O que se estabelece nos Estados Unidos aponta muito mais na direção oposta. Reconfigurações já estão sendo trabalhadas nesse país, o que reforça a hegemonia da finança. Observase nos Estados Unidos uma fusão entre grandes proprietários e a alta gerência.

4) Muitas correntes teóricas nas áreas das Ciências Sociais de prestígio na atualidade consideram a luta de classes e a análise a partir dela um anacronismo. Nas suas análises, o senhor afirma que a compreensão de todo o capitalismo, inclusive da sua fase atual, não é possível sem a compreensão das classes sociais e de sua luta. Qual é o papel da luta de classes na origem do neoliberalismo? Qual é a co-relação de forças entre as classes sociais hoje?
A recusa ou a incapacidade de ver na luta de classes o famoso motor da história não é surpreendente da parte das classes dominantes ou das escolas de pensamento que, intencionalmente ou não, são suas propagandistas. Entretanto, não se compreende nada da história do capitalismo sem se reconhecer este papel determinante, em particular na análise do neoliberalismo. A contenção ou a repressão dos lucros das classes capitalistas no compromisso keynesiano é um fato histórico que se pode verificar nas modalidades de dispositivos institucionais (de regulação monetária e financeira, tais como as normas de taxas de juros ou os limites à conversibilidade) e nas rendas e patrimônios das classes mais abastadas, que se pode apreender quantitativamente. O neoliberalismo continuou, na América Latina, o trabalho dos regimes fascistas; na Europa e nos Estados Unidos a imposição da ordem neoliberal fez-se ao preço da repressão dos movimentos grevistas e das lutas populares (pensemos em Margaret Thatcher e Ronald Reagan). Mas, todos os componentes da luta das classes capitalistas,
desde a Segunda Guerra Mundial até nossos dias, visam retomar o controle dos espíritos (universitários, prêmios Nobel, mídias, etc.), testemunhas de uma estratégia concebida e formulada desde os primeiros anos da perda da hegemonia (ler sobre o assunto Von Hayek). É bem mais surpreendente constatar a oposição que nós encontramos (Dominique Lévy e eu) assim que apresentamos essa interpretação de classe do neoliberalismo, há aproximadamente dez anos. As coisas progridem, por exemplo, Dav id Ha rv e y ,  a   s u a  mane i ra ,   a   re tomou  na   s u a  Pe q u ena  Hi s tór i a  do Neoliberalismo, mas, no decorrer da minha última passagem pelo Brasil, eu ainda ouvi teóricos da extrema esquerda marxista pura e dura, qualificarem esta tese de subjetivista, visto que ela dá peso excessivo à estratégia organizada de uma classe, ou fração de classe. A essa leitura da história, prefere-se uma interpretação que caracteriza o neoliberalismo como fruto do desenvolvimento objetivo e necessário da evolução do capitalismo, ocupado há dois séculos em cavar seu túmulo com o mesmo empenho. Na análise que nós realizamos sobre a história do capitalismo, tentamos sempre combinar concretamente – o que requer muito trabalho – as condições objetivas e o jogo da luta de classes; no qual seria um erro subestimar as vontades ativas. É difícil manter o equilíbrio a todo instante, mas o objetivo é esse. O princípio geral foi anunciado por Marx: os homens fazem sua própria história, mas em condições determinadas (subentende-se, em larga medida, “condições econômicas”).

5) Dentro dessa validade teórico-prática da luta de classes e do materialismo histórico, como é possível pensar para além do marxismo? Ou ainda, pensar para além é romper ou atualizar categorias de análise propostas por Marx?
Na análise de classe do neoliberalismo é necessário reconhecer a natureza social da ordem dominante no decorrer das primeiras décadas do compromisso do pós-guerra. Nesse compromisso, os quadros assalariados dos setores público e privado jogaram um papel central. Essa centralidade refere-se a sua capacidade de “gerenciar” as organizações (empresas ou outras) ou de definir e colocar em ação políticas de aportes sociais alternativos: exprimindo um compromisso de esquerda com as classes populares (operários e outros assalariados) ou com certas frações das classes capitalistas. Os quadros detinham uma espécie de
monopólio nesse sentido. De certa maneira, como classe média, eles podem oscilar entre um lado e outro, em direção à direita ou à esquerda. De um lado ou de outro das barreiras sociais, eles podem obter condições de vida vantajosas. Somente a luta das classes populares os torna suscetíveis ao engajamento do “bom” lado, como ocorrido no compromisso keynesiano. É aqui que um marxista estereotipado e cristalizado pode tornar-se um obstáculo à análise teórica, recusando-se a considerar a natureza de classe nas relações de constituição das classes intermediárias de quadros e empregados. Primeiramente, é preciso parar de confundir essas classes com uma pequena burguesia; em segundo lugar, é necessário reconhecer a polarização de classe
em seu seio, entre, de um lado, os quadros que concentram as tarefas de concepção, de organização e de direção em suas mãos, e, de outro lado, os assalariados encarregados de tarefas de execução (cujo modelo pode ser as condições do trabalho produtivo, quando determinadas condições objetivas –  contato  com o  c l i ent e  ou   com  a  prox imidade  dos   q u adros  – não o interditassem). Esta revolução do pensamento, que Marx antecipou largamente, é, entretanto, muito difícil para muitos marxistas. Mas a verdadeira dificuldade para eles é a renúncia da estratégia tradicional do “movimento operário”, que conduz, nos países que se reclamam socialistas, à emergência de uma classe de quadros sobre as bases estabelecidas pela vanguarda revolucionária (ler sobre esse assunto Moshe Lewin).

6) As classes sociais têm papel importante para a fundamentação da teoria social de Marx, como explicar a ausência de uma leitura sistemática sobre esse tema [da] obra desse autor?
Eu acredito que a obra de Marx referente às classes sociais é largamente estudada. O problema é a esclerose dos modos de pensamento. A teoria marxista, como prática, é ainda muito freqüentemente fechada no academicismo: nenhuma idéia pode ser avançada se não for emprestada de um autor. É preciso sair disso: ousar pensar, em especial, sobre as classes.

7) Para encerrar a questão das classes sociais, o Senhor vê como central o   d e s e n v o l v ime n t o   d e s s e   t ema   e   s u a   p r o b l ema t i z a ç ã o   p a r a   o aprofundamento das análises sociais hoje? Por que? A leitura, por exemplo, do neoliberalismo não necessitaria de uma caracterização do que são as classes hoje? De como essas classes se ramificam e de como se embatem na atual fase do capitalismo?
Tendo em vista o que eu já disse anteriormente, a resposta a essa questão é, evidentemente, positiva. Eu acredito muito no estudo factual. É preciso estudar concretamente as estruturas de classe e as práticas de classe. Trata-se de um verdadeiro trabalho de sociólogo, de historiador ou de especialista em ciências políticas. Incluir esse trabalho no campo da economia, tal como ela é ensinada, seria uma revolução. Existem numerosos trabalhos nesse sentido, mas é preciso avançar; sobretudo não temer mostrar que decisões são tomadas e colocadas em prática, quer se trate da gestão das empresas, quer da definição de políticas ou da organização das lutas.

8) Dentro dessa perspectiva, como se inseriria a América Latina na ordem neoliberal? Qual é o papel das economias dos países latinos americanos no capitalismo mundializado?
A  América Latina ocupa um lugar particular no neoliberalismo. Em primeiro lugar, ela foi a primeira vítima da ordem neoliberal. A América Latina saiu das primeiras décadas do pós-guerra com uma força de trabalho gozando de certo
poder de compra (a despeito das enormes desigualdades internas de cada país e mesmo entre eles). Saiu também com uma indústria nacional suficientemente avançada e autônoma. As classes dominantes dessa região do mundo aspiravam
a se inserir na nova configuração do imperialismo em condições relativamente vantajosas, mas a abertura neoliberal e o rumo das reformas que ela ocasionou produziram estragos. Um caso emblemático foi o da Argentina nos anos 1990, onde as classes dirigentes venderam massivamente suas empresas e exportaram seus capitais aos Estados Unidos. As políticas neoliberais dessa década criaram as condições da terrível crise do começo dos anos 2000, e da miséria que ela provocou. Tais políticas ainda acentuaram a queda dramática do poder de compra dos assalariados empregados a partir dos anos 1970. Desse ponto de vista, a América Latina é radicalmente diferente de um país como a China que se abre à mundialização neoliberal com uma força de trabalho muito barata, cujo baixo preço é reforçado por uma taxa de câmbio muito fraca. Sua classe dirigente está em processo de transformação em direção ao capitalismo selvagem e seus apetites voltaram-se para os meios de produção
nacionais ainda a serem apropriados (o bolo ainda está em casa). Porém, em segundo lugar, a  América Latina é uma terra de luta e de resistências sociais. De maneira geral, vista da Europa, é a região do mundo na qual poderiam emergir as forças mais radicais de desestabilização do capitalismo neoliberal. A imagem que se impõe é contrastada por lutas populares e sanções
eleitorais, de um lado, acumulação de recuos e ocasiões perdidas, por outro. É fácil dizer, mas difícil realizar.

9) Amparando as políticas macro-econômicas neoliberais existe um discurso neoliberal: de necessidade de desregulamentação do uso da força de trabalho, da diminuição do papel do Estado na economia, etc. Por que esse discurso tem repercussão? Em outras palavras, existe uma base material que sustente esse discurso, quando o que vemos é um Estado que cada vez mais se coloca presente para administrar os interesses dos capitalistas?
Toda a história do neoliberalismo desde suas origens é permeada por essa tensão entre a desregulamentação e a diminuição do papel do Estado, de uma parte, e seu fortalecimento, de outra. Por exemplo, os Estados Unidos votaram, em 1980 (no dia seguinte da alta das taxas de lucro, do Golpe de 1979), uma lei intitulada Deregulation and Monetary Control Act, a lei de desregulamentação e de controle monetário. A justaposição dos termos é perfeitamente explícita: liberação da ação das empresas de um lado e fortalecimento do controle exercido pelo Banco Central sobre a criação monetária de outro. Portanto, maior ou menor presença do Estado? Resposta: depende. Sim, o neoliberalismo liberou as empresas de certos entraves, pois se tratava de ter lucros; sim há um enorme fortalecimento do poder do Banco Central, pois se trata de lutar contra a inflação
que arruinava os ricos. O princípio geral é que os fins são mais importantes que os meios. Quem negaria que o Estado estadunidense é forte? É verdade no plano militar, como também no plano econômico. Quem negocia os tratados de livre-comércio, senão o Estado dos Estados Unidos? Nesse início de século XXI, a economia estadunidense estaria acabada sem a intervenção maciça do Estado no que se refere à política macroeconômica, em especial a política de crédito.

10) É comum ouvirmos hoje, até mesmo como justificativa da impossibilidade de controle sobre o capitalismo, que o capital financeiro e o capital produtivo são duas coisas diferentes e independentes. O que o senhor acha disso? A ruptura entre a base produtiva e o capital financeiro não seria mais uma ideologia sobre o fim do trabalho?
Não  é   cor r e to opor   c api t a l   f inanc e i ro  a   c api t a l  não- f inanc e i ro no capitalismo de hoje (nem mesmo no tempo de Hilferding, como vimos). Nas formas as mais avançadas que reveste a relação capitalista de nossos dias, a finança (fração superior das classes capitalistas e instituições financeiras) possui tudo: capital financeiro e não-financeiro. A propriedade do setor produtivo (de produção de bens ou de serviços) é financeira, pois se materializa em ações (ou, em um sentido estendido da noção de propriedade, em títulos de créditos). Tudo é negociável no mercado financeiro. A propriedade das grandes
famílias capitalistas é fortemente diferenciada e mediada pelas sociedades financeiras que obscurecem a verdadeira natureza da relação de propriedade. A diferença entre um setor financeiro e não-financeiro existe somente nas empresas de menor porte onde o papel de proprietários individuais permanece significativo. Esta é uma das formas de dominação do grande capital sobre o capital mais fraco e freqüentemente mais endividado. Para tratar seriamente esta questão, seria necessário considerá-la no quadro mais geral das relações imperialistas e, tendo em vista a especificidade de certas economias, como a economia brasileira. O controle do setor financeiro pelo estrangeiro, isto é, do capital internacional, já está avançado no Brasil (ainda em curso de realização), e as características familiares da propriedade de certas empresas podem permanecer acentuadas.

1 1 )  Sua s   aná l i s e s   apont am que  o neol ibe r a l i smo  j á   apr e s ent a evidências de esgotamento e fragilização. Quais são esses elementos? Que saídas são possíveis nesse contexto?
Se deixarmos de lado a questão das resistências políticas que ocorrem hoje, em especial na América do Sul, as principais contradições se situam nos Estados Unidos.  A formulação mais “compacta” que se pode dar a essas contradições remete, de um lado, às classes capitalistas estadunidenses e, de outro, aos Estados Unidos como país. Do ponto de vista das classes capitalistas estadunidenses, o território do país não constitui mais um campo de investimentos privilegiado. Uma parte
importante, embora impossível de contabilizar, da fortuna das famílias é investida no estrangeiro, notadamente por intermédio dos paraísos fiscais. Importa somente a rentabilidade dos investimentos. Tudo é bom, em particular nos países onde o custo da força de trabalho é pouco elevado e onde a ordem impera, como na China. Os ganhos obtidos por intermédio dos paraísos
fiscais são em parte acumulados fora dos Estados Unidos. Do ponto de vista dos Estados Unidos como país, são os outros países que financiam: 1. a acumulação do capital no território estadunidense, 2. O déficit orçamentário e, mesmo, 3. a exportação de capitais para o resto do mundo.   A demanda  domé s t i c a   e s t adunidens e   é   s atisfe i t a   ao pre ço de
importações muito elevadas, corolário da fragilidade dos investimentos locais e da desterritoralização da produção. A evasão para os paraísos fiscais contribui no déficit orçamentário, quando, na verdade, a estratégia imperialista das classes capitalistas passa por um Estado forte, logo, dispendioso. Esse divórcio tem duas conseqüências. De uma parte, essa trajetória requer
o pagamento de um fluxo crescente de dividendos e de juros ao estrangeiro, e ela só pode progredir na medida em que os estrangeiros permanecem dispostos a investir nos Estados Unidos, o que a acumulação dos desequilíbrios exteriores pode comprometer. De outra parte, a sustentação da atividade econômica nos Estados Unidos torna-se cada vez mais difícil. Todas as possibilidades são maximizadas.   As taxas de juros reais ganham níveis comparados aqueles dos anos 1950 ou 1960, em plena contradição com os objetivos do neoliberalismo; o dólar torna-se frágil, pois um dólar elevado, como as taxas de juros elevadas, poderiam causar uma nova recessão; o endividamento interno é forçado ao extremo, com riscos de instabilidade
considerável, e mesmo que tudo fosse feito para evitá-lo, poderia igualmente provocar uma contração da atividade; a gestão das empresas está inteiramente voltada para a busca da alta dos lucros dos acionistas, enquanto que a quase totalidade dos benefícios são distribuídos em dividendos, prejudicando, dessa forma, a acumulação local (o que torna necessário o financiamento exterior). Tu d o   fa z ,  p o r t a n t o,  p re ve r   a   fo rm a ç ã o   d e   u m a   n ova   fa s e   d o neoliberalismo, ou para além do neoliberalismo. É necessário compreender que a preocupação central das classes dominantes são seus objetivos, e não os métodos utilizados para a sua consecução. O que elas não puderam obter segundo as regras que prevaleceram em vinte anos de neoliberalismo, essas classes tentarão obter de outra maneira. Uma vez mais, todos os meios são bons. O Estado dos Estados Unidos fará tudo aquilo que esteja em seu poder para  pre s e rvar, de   uma  pa rt e,  a   for ç a  do pa í s   e, de  ou t ra,  a   s i t u a ç ao extremamente favorável de suas classes dirigentes. Somente as lutas populares
poderão desestabilizar o compromisso político entre as classes capitalistas e as frações superiores dos quadros, em benefício de um compromisso mais “à esquerda” ou “menos à direita”. Mas,  nada se pode dar como certo no plano do imperialismo.

12) O que é ser um país imperialista na fase atual do capitalismo quando os capitais não são apenas capitais nacionais? Quando boa parte dos lucros capitalistas vai para paraísos ficais?
A situação que eu acabei de descrever corresponde, de fato, a uma configuração imperialista bem pouco ortodoxa. Essas transformações implicam reconsiderar certas ambigüidades dos conceitos fundamentais, como no caso das classes, considerado anteriormente. O imperialismo é uma característica estrutural do capitalismo, desde sua origem. Em paralelo à exploração dos trabalhadores produtivos em cada país, existe uma segunda relação fundamental de exploração (ao lado de várias outras
como as relações de explorações patriarcais) desejosa de que os países mais avançados façam de seu avanço a alavanca de uma dominação (as ferramentas para isso são: a abertura das fronteiras comerciais e monetárias entre países com níveis de desenvolvimento muito desiguais, a corrupção, a subvenção e a guerra). É esta, portanto, a questão no imperialismo. Evidentemente, estas duas relações de exploração (capitalista/trabalhador produtivo – país avançado/país menos avançado) se combinam, pois são as classes capitalistas que desde o início se beneficiam da relação imperialista.

13) Uma palavra sobre o Brasil. Sabemos que seus estudos sobre a América Latina não tem como foco principal nosso país, mas como o senhor vê os processos político-econômicos do Brasil hoje? Qual é a sua avaliação do governo Lula quanto à sua integração à ordem neoliberal?
A dificuldade que encontra a concepção tradicional de imperialismo face às configurações contemporâneas se constrói sobre essa dualidade: exploração de um país sobre um outro ou exploração da classe dominante do país dominante sobre um país menos avançado (de todas suas classes)? O que se observa nos Estados Unidos é uma « desconexão » crescente entre o caráter nacional da dominação imperialista e seu caráter de classe, na qual a força nacional (o braço diplomático e armado da relação imperialista) continua sendo instrumentalizado pela classe capitalista, ainda que ela aspire a se autonomizar em um paroxismo de egoísmo social, como classe dominante mundial (possivelmente em relação às classes dominantes de outros países).
Como a maioria dos países da América Latina, o Brasil cresce lentamente desde o começo dos anos 1980. O fluxo de investimentos estrangeiros não modificou essa situação. O orçamento revela um excedente primário justificado pela pretensa necessidade de pagamento da dívida pública, e as taxas de juros permanecem muito altas. As tarefas de primeira ordem, como a educação, a reforma agrária, a construção da infra-estrutura ou a segurança pública, são negligenciadas em nome dessa ortodoxia. O governo Lula, a despeito da distribuição de recursos aos mais pobres como nas « bolsas famílias », curva-se ao modelo neoliberal, sem satisfazer as reivindicações populares ou aquelas dos proprietários de setores econômicos que conservam seu caráter nacional. A abertura à mundialização neoliberal é total: o setor financeiro passa gradualmente ao controle estrangeiro. O Brasil é atualmente um dos atores da crise da OMC (o fiasco do ciclo de Doha), face à resistência dos países do centro a abrir seus mercados de produtos agrícolas. É melhor que uma submissão integral, mas a demanda de um país
como o Brasil não contradiz em nada os objetivos neoliberais. Trata-se somente de exigir que os países dominantes joguem honestamente o jogo neoliberal que eles impõem aos outros, aquilo que é um mínimo. O Brasil jamais toma o lugar de vanguarda das resistências contra o imperialismo ou o neoliberalismo. Por exemplo, ao mesmo tempo em que a Argentina anulou uma parte muito importante de sua dívida pública, o Brasil foi um bom aluno do neoliberalismo e não apoiou esse movimento, nem verbalmente, nem de fato. Uma oportunidade foi, entretanto, aberta. No que se refere à luta contra as taxas de juros elevadas, o governo Lula é menos radical que certos industriais nacionais. O resultado é, portanto, bastante severo.

14)  Ao levarmos em conta que a conjuntura política conservadora, mesmo que não uniforme, prevalece no mundo hoje, como seria possível vislumbrar uma ação política de esquerda e vinculada a que tipo de organização política?
É preciso utilizar todas as organizações de luta política disponíveis e expandir a luta para além dessas organizações. Uma primeira tarefa consiste em resistir a todos os avanços neoliberais, por exemplo, na desmontagem de proteções sociais,
na redução dos poderes de compra, na privatização do ensino ou no abandono das estruturas públicas de educação, de assistência social, etc. Os métodos tradicionais são eficazes (ocupações, greves, manifestações, fóruns...), mas nada proíbe o emprego de novos métodos: o MST é um exemplo disso. Uma tarefa urgente é desfazer a lavagem cerebral. A ação deve ser conduzida a todos os níveis, dirigindo-se a grupos bem informados e formados, ou populares. É preciso criar meios de difusão alternativos, preservar ou ativar as formas de luta culturais: teatro, música, quadrinhos... A utilização das organizações tradicionais como os partidos ou sindicatos não está excluída, mas a experiência prova que essas estruturas formais
produziram espontaneamente quadros que não resistem a sua própria ascensão, engajando-se em processos de promoção social. O preceito zapatista que diz que “o poder corrompe” é justo, mas toda a criatividade dos movimentos sociais deve visar ultrapassá-lo.

15) E, para finalizar, o que é ser marxista hoje?
O horizonte é sempre a superação de todas as estruturas de classe, as quais se somam todas outras formas de exploração. Não é suficiente nascer igual, ainda é preciso dispor de meios econômicos e intelectuais de preservação dessa igualdade: não uma igualdade de possibilidades, mas uma igualdade realizada. Por que se referir a um homem morto há mais de um século, ao invés de se contentar em se engajar na luta de hoje? Porque Marx, outro homem de ação nas lutas de seu tempo, foi o teórico mais completo do capitalismo e, de uma maneira mais geral, das sociedades de classe. Eu não vejo como compreender a
sociedade atual e sua história fora da estrutura forças produtivas/relações de produção – classes (na sua relação com as relações de produção) e luta de classes – Estado. No plano econômico, eu não vejo como renunciar às teorias marxistas de exploração,  de instabilidade macroeconômica, da transformação técnica ou da centralidade das taxas de lucro... Nada é perfeito, mas o ponto de partida é exatamente este. O capitalismo produziu muito bem no século XIX e no século XX a violência geradora de sua própria eliminação. E podemos dizer que o neoliberalismo prolonga essa tendência. Marx previu no proletariado a força social suscetível de mudar o mundo, mas essas experiências soçobraram. Inúmeros marxistas não fizeram ainda esse balanço justificados pelas suas autoproclamações de “probidade democrática”. Ser marxista hoje é voltar-se às raízes do pensamento de Marx, sem perder de vista a história do capitalismo e aquilo que foi o socialismo marxista. Resumidamente, atualizar tudo, conservando os princípios fundamentais.

Revoluções no século XX

quarta-feira, 25 de maio de 2011

2 ano - 2 bimestre: Trechos editados e adaptados da conferência: “O Que Foi a Revolução de Outubro” de Leon Trotsky em 27 de Novembro de 1932

Trechos editados e adaptados da conferência: “O Que Foi a Revolução de Outubro” de Leon Trotsky em 27 de Novembro de 1932


A sociedade humana é o resultado histórico da luta pela existência e da segurança na preservação das gerações. O caráter da economia determina o caráter da sociedade. Os meios de produção determinam o caráter da economia.
A cada grande época, no desenvolvimento das forças de produção, corresponde um regime social definido. Até agora, cada regime social assegurou enormes vantagens à classe dominante.
É evidente que os regimes sociais não são eternos. Nascem e, historicamente, transformam-se em obstáculos ao progresso ulterior. "Tudo que nasce é digno de perecer".
Nunca, porém, uma classe dominante abdicou, voluntária e pacificamente, ao poder. Nas questões de vida e morte os argumentos fundados na razão nunca substituíram os argumentos da força. É triste dizê-lo. Mas é assim. Não fomos nós que fizemos este mundo. Só podemos tomá-lo tal como é.
A revolução significa mudança do regime social. Ela transmite o poder das mãos de uma classe, que se esgotou, as mãos de outra classe em ascensão. A insurreição constitui o momento mais crítico e mais agudo na luta de duas classes pelo poder. A sublevação não pode conduzir a vitória real da revolução e a implantação de novo regime senão quando se apóia sobre uma classe progressista, capaz de agrupar em torno de si a imensa maioria do povo.  Diferentemente dos processos da natureza, a revolução realiza-se por intermédio dos homens. Mas, na revolução também os homens atuam sob a influência de condições sociais que eles próprios não elegem livremente, senão que herdam do passado e lhes assinala imperiosamente o caminho. A intervenção ativa das massas nos acontecimentos constitui o elemento indispensável da revolução. É, sem dúvida, a demonstração, de uma rebelião, sem elevar-se a altura de uma revolução. A sublevação das massas deve conduzir a derrubada do poder  de uma classe e ao estabelecimento da dominação de outra. Somente assim teremos uma revolução consumada. A sublevação das massas não é um empreendimento isolado que se pode provocar por capricho. Representa um elemento objetivamente condicionado ao desenvolvimento da revolução, que por sua vez é um processo condicionado ao desenvolvimento da sociedade. Isto não quer dizer, entretanto, que, uma vez existentes as condições objetivas da sublevação, se deva esperar passivamente, com boca aberta. Para varrer o regime que sobrevive, a classe avançada deve compreender que soou a hora e propor-se à tarefa da conquista do poder. Aqui se abre o campo da ação revolucionária consciente, onde a previsão e o cálculo se unem à vontade e à bravura. Dito de outra forma: aqui se abre o campo a ação do partido.
O partido revolucionário condensa o mais seleto da classe avançada. Sem um partido capaz de orientar-se nas circunstâncias, de apreciar a marcha e o ritmo dos acontecimentos e de conquistar a tempo a  confiança das massas, a vitória da revolução proletária é impossível. Tal é a relação dos fatores objetivos e dos fatores subjetivos da revolução e da insurreição.
Quais as perguntas  que a Revolução de Outubro sugere a todo o homem? Primeira: por que obteve êxito esta revolução? Ou, mais concretamente, por que a revolução proletária triunfou num dos países mais atrasados da Europa? Segunda questão: que trouxe a Revolução de Outubro? E por último: concretizou-se o que dela se esperava?
Pode-se responder à primeira pergunta - sobre as causas - de modo mais ou menos completo. Tentei fazê-lo o mais explicitamente possível na minha História da Revolução Russa. Aqui, não posso fazer outra coisa senão formular as conclusões mais importantes. O fato de ter o proletariado chegado ao poder, pela primeira vez de forma duradoura, num país tão atrasado, como a Rússia, só à primeira vista pode parecer misterioso. Na realidade, resulta de uma lógica rigorosa. Podia-se prever. E previu-se. Mais ainda: diante dessa perspectiva, os revolucionários marxistas elaboraram a sua estratégia muito antes dos acontecimentos decisivos. A primeira explicação e a mais geral: a Rússia é um país atrasado. Mas, também, a Rússia não é mais que uma parte da economia mundial, um elemento do sistema capitalista mundial. E Lênin resolveu o enigma da revolução russa com a seguinte fórmula lapidar: a cadeia rompeu-se pelo elo mais fraco. Uma situação clara: a grande guerra, produto das contradições do imperialismo mundial, arrastou em seu torvelinho países que se achavam em diferentes etapas de desenvolvimento e impôs a todos as mesmas exigências.; Resulta, pois, que os encargos da guerra se tornariam mais insuportáveis, particularmente, para os países mais atrasados. A Rússia foi o primeiro que se viu obrigado a ceder terreno. Mas, para sair da guerra, o povo precisava abater as classes dominantes. Assim foi como a cadeia se quebrou. A guerra não é uma catástrofe, determinada por fatores alheios, como um terremoto. Para com o velho Clausevitz, é a continuação da política por outros meios. Durante a guerra, as tendências principais do sistema imperialista de tempos de "paz" apenas se exteriorizaram de modo mais agudo. Quanto mais elevadas sejam as forças gerais de produção; quanto mais tensa seja a concorrência mundial; quanto mais acirrem os antagonismos; quanto mais desenfreada seja a corrida armamentista, tanto mais penosa se torna a situação para os participantes mais fracos. Precisamente esta é a  causa pela qual os países mais atrasados ocupam o primeiro lugar na série dos desmoronamentos. A cadeia do capitalismo tende sempre a partir-se pelos elos mais fracos. Se por causa de certas circunstâncias extraordinárias ou extraordinariamente desfavoráveis - por exemplo, uma intervenção militar vitoriosa do exterior, devido a falta irreparáveis do próprio governo soviético -, se restabelecesse o capitalismo sobre o imenso território soviético, sua insuficiência histórica aprontaria, rapidamente, sua nova queda, vítima das mesmas contradições que provocaram, em 1917, a explosão. Nenhuma receita tática poderia dar vida a Revolução de Outubro se a Rússia não a levasse nas suas próprias entranhas. O partido revolucionário não pode desempenhar outro papel senão o de parteiro que se vê obrigado a recorrer à operação cesariana. Poderiam objetar-me: suas considerações gerais podem explicar, suficientemente, por que razão a velha Rússia (este país onde o capitalismo atrasado, junto a uma classe camponesa miserável, estava coroado por uma nobreza parasitária e arrematando, por uma monarquia putrefata) teria que naufragar. Mas, na imagem da cadeia e do elo mais fraco falta ainda a chave do enigma: como, num país atrasado podia triunfar a revolução socialista? Porque a história conhece muitos exemplos de decadência de países e de culturas, que, após a derrocada simultânea das velhas classes, não puderam achar nenhuma forma progressista para ressurgir. A derrocada da velha Rússia deveria, ao que tudo indica, transformar o país numa colônia capitalista e não numa República socialista. Esta objeção é viciosa. Eu diria: desprovida de proporção interna. De um lado, decorre de uma concepção exagerada quanto ao atraso da Rússia. De outro, de uma falsa concepção teórica no que diz respeito ao fenômeno do atraso geral.
Os seres vivos - naturalmente, entre eles, o homem - atravessam, com relação à idade, estágios de desenvolvimento semelhantes. Numa criança normal de cinco anos, encontra-se certa correspondência entre peso, o tamanho e os órgãos internos. Mas, isto não sucede com a consciência humana. Em oposição à anatomia e à fisiologia, a psicologia, tanto a do indivíduo como a da coletividade, distingue-se por uma extraordinária capacidade de assimilação, flexibilidade e elasticidade: nisto mesmo reside também a vantagem aristocrática do homem sobre seu parente zoológico mais próximo da espécie dos monos. A consciência, susceptível de assimilar, confere - como condição necessária ao progresso histórico - aos "organismos chamados sociais, ao contrário dos organismos reais, isto é, biológicos, uma extraordinária variabilidade de estrutura interna. No desenvolvimento das nações e dos Estados, dos capitalistas em particular, não existe nem similitude nem uniformidade. Diferentes graus de cultura, até os pólos opostos, aproximam-se e combinam-se, com muita freqüência, na vida de um país. Não esqueçamos, queridos ouvintes, que o atraso histórico é uma noção relativa. Se existem países atrasados e avançados, há também uma ação recíproca entre eles. Há a opressão dos países avançados sobre os retardatários, bem como a necessidade para os países atrasados de alcançar aqueles mais adiantados, adquirir-lhes a técnica, a ciência, etc. Assim surgiu um tipo combinado de desenvolvimento: os caracteres mais atrasados absorvem a última palavra da técnica e do pensamento mundiais. Enfim, os países historicamente atrasados são por vezes obrigados a ultrapassar os demais. A consciência coletiva vê a possibilidade de lograr, em certas condições, sobre a arena social, o resultado que, em psicologia individual, se chama "a compensação". Pode-se afirmar, neste sentido, que a Revolução de Outubro foi para os povos da Rússia um meio heróico de superar sua própria inferioridade econômica e cultural.
Passemos sobre estas generalizações histórico-políticas, que, talvez, sejam um tanto abstratas, para focalizar a mesma questão de modo concreto, isto é, através de fatos econômicos vivos. O atraso da Rússia do século XX expressa-se, mais claramente, da seguinte maneira: a indústria ocupa, no país, um lugar mínimo, em comparação com o campo. Isto significa, no conjunto, uma baixa produtividade do trabalho nacional. Basta dizer que, às vésperas da guerra, quando a Rússia tzarista alcançara o cume de sua prosperidade, a renda nacional era de oito a dez vezes inferior à dos Estados Unidos. Isto expressa, numericamente, a "amplitude" do atraso, se é que podemos servir-nos da palavra amplitude no que se refere a atraso. Ao mesmo tempo, a lei do desenvolvimento combinado manifesta-se a cada passo, no domínio econômico, tanto nos fenômenos simples como nos complexos. Quase sem rotas nacionais, a Rússia viu-se obrigada a construir vias férreas. Sem haver passado pelo artesanato e pela manufatura européias, a Rússia saltou diretamente para a produção mecanizada. Saltar as etapas intermediárias, tal é o caminho dos países atrasados. Enquanto a economia camponesa permanecia, freqüentemente, ao nível do século XVII, a indústria da Rússia, se não em capacidade, pelo menos no seu tipo, achava-se no mesmo nível dos países avançados e; por vezes, sobrepunha-o em muitos aspectos.
Assinale-se que as empresas gigantes, com mais de mil operários, ocupavam, nos Estados Unidos, menos de 18% da totalidade dos operários industriais, enquanto na Rússia a proporção era de 41%. Este fato não confirma a concepção trivial do atraso econômico da Rússia. Mas, por outro lado também não nega o atraso geral. As duas concepções completam-se dialeticamente. A estrutura de classe do país também apresentava o mesmo caráter contraditório. O capital financeiro da Europa industrializava a economia russa num ritmo acelerado. A burguesia industrial logo adquiria o caráter do grande capitalismo, inimigo do povo. Além do mais, os acionistas estrangeiros viviam fora do país, enquanto, por outro lado, os operários eram autenticamente russos. Uma burguesia russa numericamente débil, que não possuía nenhuma raiz nacional, defrontava-se desta forma com um proletariado relativamente forte e com rijas e profundas raízes no povo. Para o caráter revolucionário do proletariado contribuiu o fato de que a Rússia, precisamente como país atrasado e forçado a abrigar os adversários, não chegou a elaborar um conservadorismo social e político próprio. Como a nação mais conservadora da Europa e ainda do mundo inteiro, o mais velho país capitalista, a Inglaterra, dá-me razão. Poderia considerar-se a Rússia como um país desprovido de conservadorismo. O proletariado russo, jovem, resoluto, não constituía, contudo, mais que uma pequena minoria da nação. As reservas de sua potência revolucionária encontrava-se fora de seu próprio seio: no campesinato, que vivia numa semi-servidão, e nas nacionalidades oprimidas.
A questão agrária formava a base da revolução. A antiga servidão, que mantinha a autocracia, resultava duplamente insuportável nas condições da nova exploração capitalista. A comunidade agrária compunha-se de 140 milhões de deciatinas. Para 30 mil grandes proprietários latifundiários, possuidores cada um de mais ou menos em média de 2.000 deciatinas, corresponderia um total de 70 milhões de deciatinas, isto é, cerca de 10 milhões de famílias camponesas, ou seja, 50 milhões de seres.  Esta estatística da terra constituía um programa acabado da insurreição camponesa. Um nobre, Borbokin, escrevia em 1917 a Rodzianko, Presidente da Última Duma do Estado: "Eu sou um proprietário, latifundiário e não me ocorre pensar nem por um momento que tenha de perder minha terra, muito menos para um fim inacreditável: para fazer uma experiência socialista". Mas as revoluções sempre têm como objetivo a mesma tarefa: realizar o que não entra na cabeça das classes dominantes.
No outono de 1917, quase todo o país era um vasto campo de levantes camponeses. De 621 distritos da velha Rússia, 482, isto é, 77% estavam conflagrados pelo movimento. A luz do incêndio iluminava a sublevação nas cidades. Porém - podereis objetar - a guerra camponesa contra os latifundiários é um dos elementos clássicos da revolução burguesa e não da revolução proletária. Eu respondo: completamente justo. Assim aconteceu no passado. Mas, agora, a impotência do capitalismo para viver num país atrasado revela-se no fato de que a sublevação camponesa não empurrou para a frente a burguesia, na Rússia, senão, pelo contrário, colocou-a no campo da reação. Ao Campesinato, para não fracassar, não lhe restava outro caminho senão a aliança com o proletariado industrial. Esta ligação revolucionária com as classes oprimidas Lênin previu, genialmente, e preparou, há muito tempo, Se a burguesia pudesse resolver, francamente, a questão agrária, com toda a segurança, o proletariado não poderia conquistar o poder em 1917. Chegando demasiadamente tarde, mergulhada precocemente na decrepitude, a burguesia russa, egoísta e covarde, não teve a ousadia de levantar a mão contra a propriedade feudal. E assim deixou o poder ao proletariado e, ao mesmo tempo, o direito de dispor da sorte da sociedade burguesa. Para que o  Estado Soviético fosse realidade, era sobretudo necessária a ação combinada destes fatores de natureza histórica distinta: a guerra camponesa, isto é, um movimento que é característico da aurora do movimento burguês, e a sublevação proletária, que anuncia o crepúsculo do capitalismo. Aí reside o caráter combinado da revolução russa. Bastava que o urso camponês se levantasse sobre as patas traseiras para mostrar o terrível de sua fúria. Mas o urso camponês carecia de capacidade para dar à sua revolta uma expressão consciente: tem sempre a necessidade de um guia. Pela primeira vez na história do movimento social o campesinato sublevado encontrou um dirigente leal; o proletariado. Quatro milhões de operários da indústria e dos transportes lideraram cem milhões de camponeses. Tal foi a relação natural e inevitável entro o proletariado e a classe camponesa na revolução.
A segunda reserva revolucionária do proletariado era constituída pelas nacionalidades oprimidas, integradas , ainda assim, por camponeses na sua maioria. O caráter extensivo do desenvolvimento do Estado que se esparramava do centro de Moscou até a periferia, vai intimamente lidado ao atraso histórico do país. Ao Leste, submetia as populações mais atrasadas ainda, para melhor afogar, com seu apoio, as nacionalidades mais desenvolvidas do Oeste. Aos setenta milhões de grão-russos, que formam a massa principal da população, somam-se, assim, noventa milhões de "alógenos". Formou-se assim o Império, em cuja composição a nação dominante possuía cerca de 43% da população, integrando-se os restantes 57% de uma mescla de nacionalidade, de culturas e de regimes distintos. A opressão nacional era, na Rússia, incomparavelmente mais brutal que nos Estados vizinhos, sobrepujando, para dizer a verdade, não os que estavam do outro lado da fronteira ocidental, como, também, da oriental. Tal estado de coisas emprestava ao problema nacional enorme força explosiva. A burguesia liberal russa não queria, nem na questão nacional, nem na questão agrária, ir além de certas reformas para atenuar o regime de opressão e violência. Os governos "democratas" de Miliukov e Kerenski, que exprimiam os interesses da burguesia e da burocracia grã-russa, dedicaram-se, no curso dos oito meses de sua existência, a ensinar-lhes a seguinte lição: não obtereis o que procurais até que não o arranqueis pela força. Há muito tempo, Lênin já considerava a inevitabilidade do movimento nacional centrífugo. O Partido Bolchevique lutou, durante anos, pelo direito de autodeterminação das nacionalidades, isto é, pelo direito a completa separação estatal. Foi precisamente por causa desta exata posição na questão nacional que o proletariado russo pode ganhar, pouco a pouco, a confiança das populações oprimidas. O movimento de libertação nacional e o movimento camponês voltaram-se, forçosamente, contra a democracia oficial, fortaleceram o proletariado e lançaram-se na correnteza da insurreição de outubro.
Levanta-se assim, gradativamente, o véu do enigma da insurreição proletária num país historicamente atrasado.
Em relação com as suas tarefas imediatas, a revolução é uma revolução burguesa. Sem embargo, a burguesia russa é anti-revolucionária. Por conseguinte a vitoria da revolução só é possível como vitória do proletariado. O proletariado vitorioso não se deterá no programa da democracia burguesa e passará imediatamente ao programa do socialismo. A revolução russa será a primeira etapa da revolução socialista mundial.
Tal era a teoria da revolução permanente,  elaborada por mim em 1905 e, mais tarde, exposta a crítica mais acerba sob o apelido de "trotkismo". Isto não é mais que uma parte desta teoria. A outra parte, agora particularmente atual, expressa:
As atuais forças de produção há muito extravasaram as barreiras nacionais. A sociedade socialista é irrealizável nos limites nacionais. Por mais importantes que sejam os êxitos econômicos de um Estado operário isolado, o programa do "socialismo num só país", é um utopia pequena-burguesa. Só uma federação européia e, e depois, mundial de republicas socialistas pode abrir o caminho a uma sociedade socialista harmônica.
Hoje, depois da prova dos acontecimentos, tenho menos razão do que nunca para ratificar esta teoria.
Sem a insurreição armada de 25 de outubro de 1917 (7 de novembro, segundo o calendário atual), o Estado Soviético não existiria. Mas a insurreição não nasceu do céu. Para triunfo da revolução de outubro era necessária uma série de premissas históricas:
1. A podridão das velhas classes dominantes, da nobreza, da monarquia, da burocracia.
2. A debilidade política da burguesia, que não tinha nenhuma raiz nas massas populares.
3. O caráter revolucionário da questão agrária.
4. O caráter revolucionário do problema das nacionalidades oprimidas.
5. O peso social do proletariado.
 A estas premissas orgânicas é preciso juntar condições de conjunturas de excepcional importância:
6. A revolução de 1905 foi uma grande lição ou, segundo Lênin, "um ensaio geral" da revolução de 1917. Os sovietes, como forma de organização insubstituível de frente única proletária, na revolução, apareceram pela primeira vez, 1905.
7. A guerra imperialista aguçou todas as contradições, arrancou as massas atrasadas do seu estado de imobilidade, preparando-as para o caráter grandioso da catástrofe.
Mas todas estas condições, suficientes par irrompesse a revolução eram, porém, insuficientes para assegurar vitória do proletariado.
Faltava uma oitava condição: o Partido Bolchevique.
A insurreição só se tornou possível nessas  condições sociais e políticas. E assim aconteceu inelutavelmente. Não se pode brincar com a insurreição. Desgraçado do cirurgião que utiliza o bisturi com negligencia. A insurreição é uma arte: temas suas leis e as suas próprias regras.
O partido realizou a insurreição de outubro com um cálculo frio  e uma resolução ardente. Graças a isto pode triunfar quase sem vítimas. Por meio dos sovietes vitoriosos, os  bolcheviques puseram-se a testa do país, que abarca uma Sexta parte da superfície da terra. Suponho que a maioria dos meus ouvintes de hoje ainda não se ocupavam com a política em 1917. Tanto melhor. A jovem geração tem diante de si muitas coisas interessantes, mas não fáceis. Por outro lado, os representantes da velha geração, nesta sala, recordarão muito bem como se recebeu a tomada do poder pelos bolcheviques: como um equívoco, uma curiosidade, um escândalo, ou mais, uma pesadelo, que se desvaneceria a primeira claridade da alvorada. Os  bolcheviques mantiveram-se vinte e quatro horas, uma semana, um mês, um ano. Era preciso ampliar cada vez mais o prazo. Os amos do mundo armavam-se contra o primeiro Estado proletário: desencadeamento da guerra civil, novas e novas intervenções, bloqueio. Assim passou um ano. Passou outro. E a história já tem que contar quinze anos de existência do poder soviético. Sim, diria algum adversário: a aventura de outubro mostrou-se muito mais sólida do que nos pensávamos. Quiçá não fosse de todo uma "aventura". E, não obstante, a questão conserva toda a sua força: que se ganhou a este preço tão elevado? Pode-se dizer que se realizaram as belezas anunciadas pelos bolcheviques antes da insurreição?
Os prazos devem estar em consonância com a magnanimidade das tarefas e não com os caprichos individuais. Quinze anos! Que significam para uma vida? Durante esse tempo, morreram muitos de nossa geração e outros vieram, e os mesmos quinze anos não representam mais que um período insignificante na vida de um povo. Um segundo no relógio da História!
O capitalismo precisou de séculos para afirmar-se na luta contra a Idade Media, para elevar a ciência e a técnica, para construir vias férreas, para estender fios elétricos. E depois? Depois lançou a humanidade no inferno das guerras e das crises. E ao socialismo, seus adversários, isto é, os partidários do capitalismo, não lhe concedem mais que quinze anos para instaurar sobre a terra  o paraíso com todo o conforto moderno. Não. Nós não assumimos tal obrigação. Não estabelecemos tais prazos. Deve-se medir os processos das grandes transformações com uma escala adequada. E não sei se a sociedade  socialista se assemelharia ao paraíso bíblico. Duvido muito. Mas, na União Soviética, ainda não existe o socialismo. Um estado de transição, coalhado de contradições, carregando pesada herança do passado, sofrendo a pressão inimiga dos Estados capitalistas - isto é o que ali predomina. A Revolução de Outubro proclamou o princípio da nova sociedade. A República dos Sovietes apenas mostrou a primeira etapa de sua realização. A primeira lâmpada de Edson foi muito imperfeita. Por trás das faltas e dos erros da primeira edificação socialista que se deve vislumbrar o futuro.
E as calamidades que se abatem sobre os seres vivos? Os resultados da revolução justificam as vítimas que ela causou? Pergunta estéril e profundamente retórica! Como se o processo da história resultasse de um balanço contábil. Com tanto mais razão, ante as dificuldades e as penas da existência humana, poder-se-ia perguntar: para isto é que vale a pena viver? Ainda nesta época, de uma crise mundial sem precedentes, os suicídios constituem, felizmente, uma porcentagem muito baixa. Pois, os povos não tem o costume de buscar no suicídio um refúgio. Aliviam-se das cargas insuportáveis pela revolução. Por outro lado quem se indigna por causa das vítimas da revolução socialista? Quase sempre serão os mesmos que prepararam e glorificam as vitimas da guerra imperialista ou, pelo menos, os que se acomodaram facilmente ao conflito. Também nos poderíamos perguntar: Justifica-se a guerra? Que nos deu? Que nos ensinou?
No curso da guerra civil dos Estados Unidos, morreram 500 mil homens. Justificaram-se essas vítimas? Do ponto de vista do dono de escravos americano e das classes dominantes da Grã-Bretanha, não. Do ponto de vista do negro e do operário  britânico, completamente. E do ponto de vista do desenvolvimento da humanidade, no seu conjunto, não nos oferece a menor dúvida. Da guerra civil do ano 60 saíram os Estados Unidos atuais, com a sua iniciativa prática e veloz a técnica racionalizada, o auge econômico. Sobre essas conquistas do americanismo, a humanidade edificara a nova sociedade.
A revolução de Outubro penetrou mais profundamente que todas as precedentes no âmago da sociedade, nas relações de propriedade. Assim é que precisara prazos tanto mais amplos para que se manifestem as forças criadoras em todos os domínios da vida. Mas, a orientação geral é clara desde já: a República do Sovietes não tem por que abaixar a cabeça nem empregar a linguagem da desculpa diante dos seus acusadores capitalistas. Para apreciar o novo regime do ponto de vista do desenvolvimento humano, há que se focalizar, acima de tudo, esta questão: de que maneira se exterioriza o progresso social e como se pode medi-lo? O critério mais objetivo, mais profundo e mais indiscutível é: o progresso pode medir-se pelo crescimento da produtividade do trabalho social. A estimativa da Revolução de Outubro, sob este ângulo, experiência já deu. Pela primeira vez na história o princípio de organização socialista demonstrou sua capacidade, fornecendo resultados de produção jamais obtidos num curto período. Em cifras globais, a curva do desenvolvimento industrial da Rússia expressa-se desta forma: ponhamos para o ano de 1913, o último ano da anteguerra, o número 100. O ano 1920, fim da guerra civil, é o ponto mais baixo da indústria: 25 somente, isto é, um quarto da produção de antes da guerra. 1929, aproximadamente 200. 1932, 300, ou seja o triplo do que havia nas vésperas da guerra. O quadro aparecerá ainda mais claro à luz do índices internacionais. De 1925 a 1932, a produção industrial da Alemanha diminuiu aproximadamente vez e meia. Na América, aproximadamente, alcançou o dobro. Na União Soviética, subiu a mais do quádruplo. As cifras não podem ser mais eloqüentes.
Esse é o fato estabelecido empiricamente, a possibilidade de elevar o trabalho coletivo a uma altura jamais conhecida, com a ajuda dos métodos socialistas. Esta conquista de uma importância histórica mundial ninguém nos poderá arrebatar.
Depois do que disse, quase não vale a pena perder tempo para contestar as lamentações, segundo as quais a Revolução de Outubro conduziu a Rússia ao ocaso da cultura. Tal é a voz das classes dominantes e dos salões inquietos. A "Cultura" aristocrático-burguesa, derrubada pela revolução proletária, não era mais que um complemento da barbárie. Tanto que foi inacessível ao povo russo que pouco aportou ao tesouro da humanidade. Mas, também, no que concerne a esta cultura tão chorada pela emigração branca, é precisar a questão: em que sentido foi destruída? Num só sentido: o monopólio de uma pequena minoria sobre os bens da cultura desapareceu. No que era realmente cultural permanece intacto. Os "hunos" bolcheviques não pisotearam nem as conquistas do pensamento nem as obras de arte. Pelo contrário, restauraram, cuidadosamente, os monumentos da criação humana e deram-lhes ordem exemplar. A cultura da monarquia,  da nobreza e da burguesia, converteu-se presentemente, na cultura dos museus históricos. O povo visita com fervor esses museus, mas neles não vive. Aprende, constrói. O fato de que a Revolução de Outubro ensinou ao povo russo, aos numerosos povos da Rússia tzarista, a ler e a escrever tem incomparavelmente mais importância do que toda a cultura em conserva da Rússia de outrora. A revolução russa criou a base de uma nova cultura, destinada não aos eleitos mas a todos. As massas do mundo inteiro sentem-no: daí a sua simpatia pela União Soviética tão ardente como era antes o seu ódio contra a Rússia tzarista.
Pouco depois da insurreição, um dos generais tzaristas, Zaleski, se escandaliza de que "um porteiro ou um guarda se convertesse de pronto num presidente de tribunal; um enfermeiro, em diretor de hospital; um barbeiro, em personalidade importante; um sargento, em comandante supremo; um diarista em prefeito; um carpinteiro, em diretor de empresa".
"Quem haveria de crer?" Já se devia crer. Embora não se acreditasse, os sargentos já derrotavam os generais; o prefeito, antes diarista, rompia a resistência da velha burocracia; o carpinteiro, agora diretor, reconstruía a indústria. "Quem haveria de crer?" Que tratem agora de crer...
Para terminar, tratemos de fixar o lugar da Revolução de Outubro não somente na história da Rússia como também na história do mundo. Durante o ano de 1917, no intervalo de oito meses, duas curvas históricas convergem. A Revolução de Outubro proclama e abre a era da dominação do proletariado. É o capitalismo mundial que sofre sobre o território da Rússia a primeira grande derrota. A cadeia partiu-se pelo elo mais fraco. Mas foi a cadeia e não somente o elo que se quebrou.
O capitalismo como sistema mundial apenas sobrevive, historicamente, Terminou de cumprir sua missão: a elevação do nível de poder e da riqueza humana. A humanidade não pode estancar no degrau alcançado. Só um poderoso impulso das forças de produção e uma organização justa, planificada, em outras palavras, socialista de produção e de distribuição, pode assegurar aos homens - a todos os homens - o nível de vida digno de conferir-lhes, ao mesmo tempo, o sentimento inefável de liberdade em frente da sua própria economia. De liberdade em duas ordens de relações: primeiramente o homem não se verá obrigado a consagrar sua vida inteira ao trabalho físico; em segundo lugar, já não dependerá das leis do mercado, isto é, da forças cegas e obscuras que operam fora de sua vontade. O homem edificará, livremente, sua economia, quer dizer, ajustada a um plano, o compasso na mão. Trata-se agora de radiografar a anatomia da sociedade, de descobrir todos os seus segredos e submeter todas as suas funções a razão e a vontade do homem coletivo. Neste sentido, o socialismo gera uma nova etapa no crescimento histórico da humanidade. A nosso antepassado, armado pela primeira vez com um machado de pedra, toda a natureza se lhe apresenta como a conjuração de um poder misterioso e hostil. Mais tarde, as ciências naturais, em estreita colaboração com a tecnologia prática, iluminaram a natureza, até suas mais profundas entranhas. Por meio da energia elétrica, o físico elabora seu juízo sobre núcleo atômico. Não está longe a hora em que - como no jogo - a ciência resolverá a quimera da alquimia, transformando o esterco em ouro e o ouro em esterco. Lá, onde os demônios e as fúrias da natureza se desatavam, reina agora cada vez com mais a energia e a vontade do homem.
Mas, enquanto lutava furiosamente com a natureza, o homem criou as cegas relações com os demais, assim como as abelhas e as formigas. Com atraso e por demais indeciso, deparou com os problemas da sociedade humana. Começou pela religião para depois passar a política. A Reforma trouxe o primeiro êxito do individualismo e do nacionalismo burguês, no domínio onde imperava uma tradição morta. O pensamento crítico passou da igreja ao Estado. Nascida na luta contra o absolutismo e as condições medievais, a doutrina da soberania popular e dos direitos do homem e do cidadão ampliou-se e fortaleceu-se. Assim se formou o sistema do parlamentarismo. O pensamento crítico penetrou no domínio da administração do Estado. O racionalismo político da democracia significou a mais alta conquista da burguesia revolucionária.
Entre a natureza e Estado interpôs-se a economia. A técnica libertou o homem da tirania dos velhos elementos: a terra, a água, o fogo, o ar, para submetê-los em seguida a sua própria tirania. A atual crise mundial comprova de maneira particularmente trágica como este dominador altivo e audaz da natureza permanece escravo dos poderes cegos de sua própria economia. A tarefa histórica de nossa época consiste em substituir  o jogo anárquico do mercado por um plano nacional, e disciplinar as forças de produção, em obrigá-las a operar em harmonia, servindo docilmente as necessidades do homem. Somente sobre esta base social, o homem poderá repousar suas costas fatigadas. Não os eleitos, mas todos e todas, tornando-se cidadãos com plenos poderes do domínio do pensamento. Sem embargo, ainda não é esta a meta do caminho. Não. Isto não é mais que o princípio.
A verdade é que a humanidade produziu mais uma vez gigantes do pensamento e da ação que superam os seus contemporâneos como picos numa cadeia de montanhas. O gênero humano tem perfeito direito de orgulhar-se dos seus: Aristóteles, ShakespeareDarwin, Beethoven, Goethe, Marx, Edison, Lênin. Mas estes homens são tão raros? Antes de tudo porque saíram, quase sem exceção, das classes médias e elevadas. Salvo raras exceções, os gênios perdem-se afogados nas entranhas oprimidas do povo, antes de ter possibilidade de brotar. Mas, também, porque o processo de geração de desenvolvimento e de educação do homem permanece, em sua essência, como obra da sorte, não elaborado pela teoria, nem pela prática, não submetido a consciência e a vontade.
A antropologia, a biologia, a fisiologia, a psicologia reuniram verdadeiras montanhas de materiais para erigir ante o homem, em toda sua amplitude, as tarefas de seu próprio aperfeiçoamento corporal e espiritual e de seu desenvolvimento ulterior. Pela mão genial de Sigmund Freud, a psicanálise levantou a tampa do poço que, poeticamente, se chama a "alma" do homem. E que revelou? Nosso pensamento consciente não constitui mais que uma pequena parte do trabalho das obscuras forças psíquicas. Sábios descem aos fundos dos oceanos e fotografam a fauna misteriosa das águas. Para que o pensamento humano desça as profundezas de seu próprio oceano psíquico, deve iluminar as forças motrizes, misteriosas, da alma e submetê-las a razão e a vontade. Quando acabar as forças anárquicas de sua própria sociedade, o homem integrar-se-á nos laboratórios, nas retortas do químico. Pela primeira vez, a humanidade considerar-se-á a si mesma como matéria-prima e, no melhor dos casos, como semi-fabricação física e psíquica. O socialismo significará um salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, no sentido de que o  homem de hoje, esmagado sob o peso de contradições e sem harmonia, abrirá o caminho a uma nova espécie mais feliz.

Glossário:

Forças de produção: Meios de produção, técnicas de produção, utilização das matérias-primas.
Abdicou: Desistiu, abriu mão por vontade própria.
Insurreição: Revolta contra o poder estabelecido.
Lênin:  (Simbirsk, 22 de abril de 1870  Gorki, 21 de janeiro de 1924) foi um revolucionário e chefe de Estado russo, responsável em grande parte pela execução da Revolução Russa de 1917, líder do Partido Comunista, e primeiro presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União Soviética. Influenciou teoricamente os partidos comunistas de todo o mundo, e suas contribuições resultaram na criação de uma corrente teórica denominada leninismo. Diversos pensadores e estudiosos escreveram sobre a sua importância para a história recente, entre eles o historiador Eric Hobsbawm, para quem Lenin teria sido "o personagem mais influente do século XX".
Torvelinho: Agitação.
Clausevitz: general alemão entre o século XVIII e XIX.
Monos: Nome genérico dos macacos
Tzarista: Regime político baseado numa monarquia absolutista.
Dialeticamente: Método filosófico de pensamento que leva em consideração diversas variáveis e suas interligações, assim como, as contradições como base do desenvolvimento.
Conservadorismo: Corrente de pensamento filosófica-política alinhado as classes dominantes que defendem, no geral, a manutenção da ordem vigente.
Deciatinas: medida agrária russa equivalente a cinco metros quadrados aproximadamente.
Borbokin: um nobre da Rússia tzarista.
Rodzianko: grande proprietário de terras e figura de destaque na política tzarista.
Duma do Estado: Assembléia nacional russa.
Decrepitude: enfraquecimento.
Grão-russos: Etnia russa.
Alógenos: Que tem origem diferente.
Miliukov: De origem nobre, conhecido historiador, foi um dos líderes da ala democrática do liberalismo russo.
Kerenski: Advogado, membro da direita do Partido Socialista Revolucionário(SR) russo de 1905 a 1912, quando ingressou no Partido Trabalhista Russo e foi eleito para a Duma. Foi Ministro da Justiça do Governo Provisório e em maio de 1917 foi designado Ministro da Guerra. Após a Revolução bolchevique fugiu para os Estados Unidos.
liberalismo burguês: Corrente filosófica-política que defende a liberdade econômica e a república democrática burguesa.
acerba: exacerbar.
socialismo num só país: doutrina política formulada por Stálin para defesa de maior eficiência  imperialismo russo.
Bolchevique: Partido revolucionário socialista da Rússia.
Quiçá: Porventura.
Sovietes: Organização formada por trabalhadores, geralmente a partir de seu local de trabalho, que impulsionaram a revolução russa e posteriormente assumiram as funções políticas da nação.
Desvaneceria: Desapareceria.
Engôdo: enganar ardilosamente.
Coalhado: Obstruir.
Ocaso: Fim, decadência.
Hunos: Povo bárbaro da Ásia que invadiu a Europa.
Anárquico: Sem organização prévia, sem planejamento sistemático.